Capítulo três - Natalia

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Sento no balanço redondo que tenho na varanda de trás da casa e olho para as estrelas. Parecem um amontoado de pontos brilhantes, mas existe uma ordem específica para cada uma. Todas tem seu lugar, todas estão onde deveriam estar. A ordem do universo.

Tomo meu chá de camomila. Todas as noites, no mesmo horário, eu venho até aqui e escuto o silêncio, tentando deixar minha mente tão calma quanto posso. É a parte preferida do meu dia, a hora em que acalmo o cuspidor de tarefas dentro de mim. Respiro fundo, fecho os olhos e imagino o mato, a terra, a pilha de lenhas esperando o inverno. O jardim dos fundos é a floresta que cerca a cidade e a quinze metros de onde estou, há um lago de água escura e tranquila. Foi por causa dele que comprei essa propriedade. Minha varanda é imensa e cercada por vidros, inclusive no teto. Gosto de olhar as estrelas, mas detesto ser picada por pernilongos enquanto faço isso. Essa é a minha bolha transparente de calmaria que me separa do mundo.

Morei minha vida toda na capital, no lugar onde descansar é considerado preguiça ou procrastinação. Onde você não consegue dar um passo sem que o celular esteja grudado em alguma parte do seu corpo e seus olhos estão sempre procurando por ameaças, preocupações ou alguma tela para se perder. Onde o eco de teclas de computador está sempre ressoando, as testas estão sempre vincadas e a resposta é sempre "estou bem e você?", mas ninguém quer realmente saber como você está. Semana passada, quando encontrei com Inês, a senhora que trabalha na farmácia, a resposta dela foi: "nada bem, menina. Cristian fugiu no meio da noite, pegou o meu carro e atolou no banhado da fazenda do seu Agenor. Ele tentou sair e ficou preso na lama até às onze da manhã, quando o caseiro, sabe o Zé, filho da Genoveva com o Lorival, da agropecuária? Então, ele escutou os gritos e foi acudir. Um boi estava ameaçando-o e o cachorro não parava de latir, pego de surpresa pelo estranho no meio do terreno, e fiquei sabendo que até as galinhas foram ver o que estava acontecendo. Tiveram que chamar os trabalhadores da colheita para ajudar a tirar o carro de lá, mas estragou boa parte do motor. Eu dei uma surra no Cristian, não posso permitir esse tipo de má criação e ele está de castigo. Sem cavalo por duas semanas. Eu vendo aqueles bichos tudo antes de ver um filho meu virar marginal." Cristian, é o filho de Inês. Cristian tem nove anos. Cristian parece estar treinando para dar um ataque do coração à mãe, quando completar quinze anos.

Aqui, as pessoas não são fantasmas vestidos em ternos e saias sociais. Elas têm nomes, histórias e rostos para serem lembrados no fim do dia. O rosto que estou lembrando agora é o de Lais, satisfeita com o resultado da festa. As coisas foram melhor que o esperado e metade das salas vão entrar em negociação para pessoas que estavam na festa. Já é um ótimo ponto de partida. Pouquíssimos convidados saíram andando em linha reta da casa dela, o que comprova o sucesso absoluto do evento. Lembro da forasteira tomando tempero de salada e solto uma risada. Precisei recorrer a toda a minha boa educação para não gargalhar quando vi o fio de azeite de oliva escorrendo pelo queixo dela. Tomo mais um pouco de chá. Todo evento tem seus problemas.

Sou uma pessoa que prefere a noite, mas estou tentando mudar esse hábito. Meu médico está insistindo que não é saudável, eu discordo totalmente, mas apenas um de nós tem diploma de medicina, então eu apenas tento seguir as instruções. Depois de quinze minutos passando creme, escovando os dentes, penteando o cabelo e colocando meu pijama, solto o peso do meu corpo sobre o colchão. Ele é alto, macio mas ortopédico, branco como a neve, branco como os lençóis e o edredom. Me arrumo na minha posição de dormir, e fecho os olhos. Agora é só esperar o sono chegar. Minha perna começa a formigar e viro para o outro lado. Como vou conseguir dormir se não consigo ficar na minha posição de dormir? Tiro o braço debaixo do corpo, meu pé fica descoberto e não consigo achar a ponta do edredom para cobri-lo novamente. Minha cabeça coça, meus olhos doem por estarem sendo forçados a ficarem fechados. Bufo e jogo a coberta longe. Estou com sede. Meu cabelo cai desajeitadamente no rosto e depois de vinte e cinco segundos tentando dormir, eu desisto. Vou frisar bem ao meu médico que fiz tudo que pude, mas não deu. Ops.

Levanto, aliviada por pelo menos ter tentado dormir, e vou até o escritório, no andar de baixo. Acendo o abajur e sento na cadeira em frente à enorme mesa digitalizadora. Aperto o botão para ligar, pego o celular e ligo o notebook. Ligo também o sistema embutido de som, coloco a playlist do Duo Brooklyn para tocar e estralo os dedos. Não consigo colocar em palavras o que sinto quando estou ilustrando, eu apenas sinto. É algo que nasce dentro do meu estômago e se espalha pelo corpo todo, aos poucos. Tenho consciência do privilégio que é poder trabalhar com o que eu amo e agradeço por isso todos os dias. Desde pequena eu sabia que tinha nascido para desenhar. Meu cérebro sempre registrou o mundo de forma diferente. Sempre fui uma pessoa extremamente visual, mas de uma forma peculiar. As imagens têm vibrações para mim e possuem carga afetiva, para o bem ou para o mal. Claro que com o tempo, a profissionalização me ensinou a separar isso do mercado de trabalho, mas a forma como sinto tudo a minha volta não mudou.

Venho de uma família rica. Para ser honesta, venho de uma família milionária. Carrego um sobrenome cheio de poder em círculos mais poderosos ainda. Soando como um completo clichê, sou a filha que deveria ter se formado em medicina e ter ido trabalhar fora do país. Ao invés disso, enfrentei a minha família toda quando disse que queria cursar artes visuais e saí de casa apenas com a roupa do corpo e meu material de desenho. Não era tão orgulhosa ao ponto de deixar para trás meu bem material mais valioso no mundo inteiro. Quando me formei, meus pais e eu fizemos as pazes, para logo em seguida brigarmos novamente porque eles queriam que eu me casasse com algum filho advogado de um ricão qualquer e eu enchi a boca para falar que estava namorando com uma mulher. Houveram gritos, ameaças, a palavra deserdar foi gritada várias vezes e deixei o jantar inacabado. Lágrimas no rosto, maquiagem borrada e a comemoração da graduação arruinada. Essa é a memória que tenho de uma das conquistas mais importantes da minha vida. Não acho que a revolta deles tenha sido tanto pela minha sexualidade, mas mais pelo fato dela ser para eles uma "ninguém". Pessoas como meus pais não costumam ser desafiadas. Mas o que para eles soa como rebeldia, para mim, é assunto sério, escolhas que decidiram a minha vida, que ditaram o caminho pelo qual eu percorri e a pessoa que sou hoje, aos trinta e um anos. Tenho consciência de que minha vida seria completamente diferente se tivesse trilhado a estrada que eles me mostraram. Provavelmente só o meu nome permaneceria igual.

Depois da faculdade, de brigar novamente com meus pais e terminar o namoro com a mulher que me fez descobrir o motivo de eu nunca ter tido interesse nas barbas bem feitas dos estudantes da minha idade, eu comecei um estágio em uma agência onde me ensinou tudo que a faculdade deixou passar enquanto me se preocupava com conceitos e histórias de pessoas mortas que jamais ouvi falar novamente. Eu me dediquei. Jesus, como dei duro naquele estágio. Me cobrei ao máximo, entrei em depressão porque nem tudo saia como eu queria. Fiz terapia, tomei remédios, aprendi a desacelerar, desaprendi a desacelerar. Sou uma pessoa metódica e posso ter ouvido a palavra controladora algumas vezes, de diferentes bocas. Herança dos meus pais.

Suspiro e aprecio o ambiente à minha volta. Pronto para me receber. Pronto para me fazer feliz. Meia luz, música instrumental baixinha, meus equipamentos, o tecido macio da seda do robe rosê abraçando o meu corpo, o cheiro do meu creme favorito. Com todo o cuidado, coloco a luva de apenas dois dedos, própria para ilustrar, pego a caneta digital com as pontas dos dedos e mergulho para meu mundo de fantasia particular.

Tenho um trabalho para entregar semana que vem, mas não é nele que vou dedicar minha atenção. Abro o arquivo em branco e começo a esboçar um rosto. Ele conta uma história e é ela que quero registrar. Começo pelo bigode de seu Jão.

Esboço o formato do corpo, o ambiente em volta. A geladeira azul, a mesinha desgastada, as três prateleiras. Começo a refinar os traços, decidindo onde colocar luz, indicando as texturas, trabalhando nos gestos e no sentimento que quero captar. Ouço um galo cantar ao longe e olho para o horário. Quatro e cinquenta da manhã. Passo as mãos no rosto e esfrego os olhos, para relaxar a vista. Percebo que estou arrepiada. A música e o desenho fazem isso comigo. A contragosto, tiro minha luva, largo a caneta, desligo a mesa, o computador, a música. Minha alma apaga um pouquinho. Aperto o robe contra o corpo, tentando afastar a baixa temperatura que eu não havia notado antes. Desligo o abajur e caminho pelo corredor, com a claridade do início do raiar do dia guiando meus passos. Coloco uma cápsula de cappuccino na cafeteira e olho para fora. Encosto na bancada de mármore escuro e vejo o topo das árvores começarem a aparecer, aos poucos. Pego minha xícara e vou até meu quarto. Aqui de cima consigo ver os primeiros raios de sol se projetando nas águas tranquilas do grande lago. Aperto as duas mãos em volta da porcelana, roubando o calor que ela emana. Sorrio quando vejo a fumaça da xícara dançar contra a luz rosa do nascer do sol. Mais um dia para agradecer.

A estrada que trouxe vocêOnde histórias criam vida. Descubra agora