Prólogo

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EM TODOS OS meus anos de vida, o que eu mais fiz foi ouvir.

Certa vez, um conhecido me falou que mais válido que abrir a boca no silêncio era aguçar os ouvidos na balbúrdia: não se podia falar e ouvir ao mesmo tempo.

De alguma maneira eu levei isso como um ideal na minha vida. Foi graças a isso que acumulo em minha pequena mala mental todas as histórias que um dia eu já escutei. Já estive em reinos distantes, conversando com nobres e reis; já estive em mares revoltos e em encruzilhadas perigosas. Já me sentei a mesa de príncipes e, ao mesmo tempo, já almocei com viciados e prostitutas; já vivi sinas românticas e habitei em lares desastrosos. Já estive com homens de muita e de pouca, ou nenhuma, fé. Tudo isso porquê me permiti viajar nessas histórias. Tudo isso porquê tive tempo para ouvir.

Pode não parecer, mas eu estive com Noé durante o dilúvio. Recolhi as almas desesperadas após a erupção do Vesúvio em Pompéia. Vi o nascer das guerras, e lutei em muitas delas. Estive até mesmo durante o início dos tempos.

E por mais velho que eu pareça, eu não tenho menos que a sua idade. Eu nasci no mesmo momento que você nasceu, eu passei a existir no momento em que seu coração passou a existir.

Uma vez eu ouvi que é muito mais fácil encontrar um homem temente no meio de um campo de batalha do que em uma mesa de cafeteria. Talvez esse seja o motivo pelo qual acompanhei muitos guerreiros durante todos esses tempos: acolher espíritos desesperados, sedentos por vitórias armadas e homens afundados no próprio ego.

No lado mais profundo de um conflito, é possível encontrar todo tipo de pessoa, os quais os pensamentos divergentes os levam a uma única concordância - seja patriotismo, seja egolatria... - mas o que me levou a conhecer - e amar - August Beaufoy não foi as batalhas que ele travou, mas sua ternura após todas elas.

Quando conheci August Beaufoy, eu via apenas um jovem confuso, mas convicto. Não aparentava ser um adulto, não aparentava ser uma criança. O vi chorar na minha presença, se declarando da maneira mais bonita que já vi. O vi entregar seu coração a alguém que nunca havia visto, que não passava de um completo estranho, mas sua força de vontade era tamanha que já não se importava com o resultado seguinte, ou com as pessoas que o olhava: o que o importava era a garantia de sua liberdade, o que lhe importava era apenas ter a certeza de que queria ir para o melhor lugar depois que "se fosse". O que lhe importava era amar de todo coração alguém que não tinha certeza se podia ajudar em algo, mas que decidiu confiar.

August Beaufoy sempre foi um de meus alunos mais temerosos. Essa história é sobre ele.

August nasceu na área rural de York em 1919, numa pequena comunidade que eu duvido que tinha mais de 100 moradores. O pai - Lloyd Beaufoy, era pastor de uma igrejinha no subúrbio com menos de 20 fiéis. A mãe - Catarina, era camponesa, e colocava comida na mesa do que ela mesma colhia. Tinha descendência judaica, vinda por parte do pai, mas foi criado com a educação cristã por parte da mãe. Isso fez o menino crescer com os planos de se tornar pastor.

Era algo que Lloyd via evidentemente no filho: o dom do pastorado. Era algo que ele mesmo fazia questão de lembrar a August, e era algo que August tinha interesse em exercer. Era ousado, escrevia sermões que talvez nem ele mesmo entendia, ministrava-os na igreja do pai e fez isso vingar até os 21 anos. Ou seja, até quando foi recrutado pro exército.

Em 1940, quando a Segunda Guerra Mundial estava caminhando para o seu fim, a Grã-Bretanha, que até então não tinha entrado em conflitos diretos, se encontrava numa situação perigosa. Tinha entrado em conflitos defensivos contra as tropas nazistas e, naquele ponto, qualquer um que entrasse para as forças armadas seria imediatamente direcionado para a aeronáutica. Esse foi o caso de August.

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