I

86 2 0
                                    

"É preferível suportar os males que temos do que voar para aqueles que não conhecemos." William Shakespeare

Hallstatt, Áustria. Agosto de 1972.

          EVAN SENTIU UMA onda de agonia ao cruzar a fronteira do terreno. O homem não sabia exatamente o que havia lhe levado até ali, ou por que achou uma boa ideia simplesmente fazer uma longa viagem de York para Hallstatt apenas para ver a ruína com seus próprios olhos. Mas pensou que, por pelo menos alguns segundos, alguma memória boa pudesse voltar à tona ao se deparar com a casa - a casa que havia crescido e que viu sendo destruída. Olhou para a sua criança dormindo tranquilamente no banco de trás e abriu a porta do carro parado, para que ela pudesse desfrutar um pouco do ar fresco das colinas que Evan tanto apreciava quando era pequeno. Parecia tão tranquila que Evan não teve coragem de encostar um dedo sequer e incomodá-la, então confiou que ficaria mais segura dentro do veículo, embora soubesse que não deveria deixá-la ali sozinha por muito tempo. Ele ficou parado à frente da casa por um tempo até que, por fim, entrou - sem mais, nem menos. Sabia muito bem que violar a propriedade privada era ilegal, uma vez que a propriedade já não era mais da sua família, mas conhecia a própria situação. Sabia que já havia violado os limites do terreno mesmo, então, por que não explorá-lo?
          Aquela casa enorme havia pertencido à família Krüser por anos e anos - família a qual não tinha um sobrevivente sequer, bom, pelo menos não com esse nome, claro. Estava localizada numa área que tinha pouco, ou nenhum, sinal. Era uma região bem afastada, na área mais alta de Hallstatt, e ficava a uma hora de viagem do centro da cidade. É, era uma vida muito solitária.
          Um suspiro alto fez com que Evan parasse por alguns minutos depois da porta, um arrepio tenso pela espinha. Ainda tinha memórias frescas do interior, ou de como havia sido. O piso era ladrilhado, alternando entre ladrilhos escuros e marrons que se assemelhavam madeira, como um enorme tabuleiro de xadrez que ele projetava na mente quando criança. Mesmo na entrada tinham enormes estantes esculpidas na parede abarrotadas de livros que, talvez, nunca ninguém havia lido - pelo menos na infância, ele se lembrava dos livros ali sempre estarem muito empoeirados e alguns até mesmo intocados, desgastados pelo tempo e pelo desuso. Outros livros estavam violentamente espalhados pelo chão, alguns ele mesmo lembra de ter visto cair durante sua fuga. As paredes mostravam várias portas que, no final, levariam ao mesmo lugar - ao grande salão. O velho lustre ainda estava no mesmo lugar em que tinha visto da última vez, no chão, estraçalhado, e olhou para onde ele deveria estar, no alto do que era pra ter sido uma abóbada, bem no centro do salão, mas que agora era apenas um enorme buraco no teto, que atravessava o piso do segundo andar e dava uma vista circular do céu, no qual Evan passou por baixo como se tivesse se banhando da luz que vinha de lá. Aquela casa era muito escura. Mas o que sobrou do lustre, o que um dia foi um lindo material de luxo, tinha dado lugar a inúmeras teias, os espelhos quase, se não todos, inutilizados. As laterais do salão davam em duas escadas fixas luxuosas na parede, então Evan caminhou até uma delas, parando antes de subir o primeiro degrau. Faltavam colunas no corrimão, e a madeira do piso poderia ceder a qualquer momento, aparentemente. Isso fez com que Evan nem sequer subisse um degrau. Mas lá de baixo pode enxergar uma ponta da situação que estava no segundo andar. Evan não teve coragem de subir até lá, até porquê a destruição naquele andar havia sido tamanha que transformara a mansão numa casa de um andar só. Pode ver apenas pedaços resistentes de paredes caídas, não havia mais telhado... Aquela imagem o deixou levemente tonto.
          Ele deu alguns passos para trás das escadas e se virou, caminhando lentamente até o pequeno tamborete de madeira a frente de uma das enormes estantes, subindo nele para que alcançasse algo em específico. Queria confirmar com seus próprios olhos se o seu segredo ainda estava devidamente escondido, se alguém havia descoberto, ou não. Então, removeu um dos livros que ficava na fileira de trás, onde a poeira e destroços de vidro não tinham alcançado com a mesma intensidade que nos livros da frente, ainda que tivesse assoprado a capa para remover o pouco de sujeira que a cobria. Era um exemplar de "A Morte de Virgílio", um pequeno livro de bolso que ficava escondido no meio dos demais volumes, no entanto, possuía um pequeno mecanismo de abertura com um botão interno que abria quando se pressionava - esse instalado pelo próprio Evan. Dentro daquele livro havia um espaço vazado no meio das páginas, com um revestimento verde de veludo com um mau acabamento, contendo uma chave mestra que, aparentemente, não funcionava em nenhuma das portas e um pouco mais que 40 euros em dinheiro. Evan suspirou e soltou uma risada baixa, surpreso por aquilo ainda estar lá. Parecia um esconderijo tão esdrúxulo que não conseguia acreditar que ninguém havia encontrado antes dele. Retirou todo o conteúdo de dentro daquela caixinha improvisada e guardou dentro do bolso. Evan lembrava de sempre ganhar uma quantia do pai, apenas para que o menino tivesse o prazer de ter algo "seu" e, embora o que tivesse ali fosse pouco - se é que 44,75 euros eram pouca coisa, sabia que poderia ser algo que, talvez, o ajudasse a conquistar algumas poucas regalias ao abandonar aquele lugar sendo tão jovem.
          Ele não andou muito pela casa, temendo encontrar algo que não gostasse, mas o terror das lembranças transbordara em seu coração, e seus joelhos vacilaram. Fazia muito tempo desde que deixara aquela mansão e ainda assim aquelas lembranças assombravam sua mente dia e noite. Evan, agora um homem de vinte e três anos, lembra-se claramente da maneira que foi desabrigado, levando apenas o coração, poucos trocados e apenas a roupa do corpo para o mundo, sem saber qual seria seu destino, sem saber o que faria depois de sua partida.
          As imagens daquele dia vieram nitidamente ao se virar para a porta grande no fundo, e seu olhar o levou até a escada grande novamente - ou melhor, levou a enxergar o jovem Evan de apenas 13 anos para o topo daquela escada grande. Então, sua mente passou a projetar o próprio passado, lá no início dos anos 60.

GratiaOnde histórias criam vida. Descubra agora