IV

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"O que será, será. O futuro não é nosso para o vermos; o que será, será."
Doris Day

          "De repente, um clarão de luz perturba minha retina. Esfrego os olhos, as luvas grosseiras e sujas de jardinagem quase agridem minhas pálpebras. Paro por um minuto – por que eu estou usando luvas de jardinagem? A luz forte do sol ainda machuca meus olhos, mas me forço a abrir um pouquinho até que me acostume completamente com aquela luz. Adiante, um jardim extenso, com várias flores espalhadas, me traz a memória um antigo cenário bastante presente na minha juventude. Eu olho ao redor, tentando compreender onde estou. O ar carrega o perfume doce de jasmim e lavanda, misturado com o cheiro terroso da grama recém cortada. Aos poucos, as lembranças começam a surgir, fragmentadas, como peças de um quebra-cabeça. Este lugar... parece tão familiar, mas ao mesmo tempo distante, quase como um sonho esquecido. 

          Algo me diz pra continuar a fazer o que eu estava fazendo – se é que eu me lembro, ou de fato sei, o que eu estava fazendo. Algo me diz que eu passei muito tempo cuidando do jardim antes daquele momento de vislumbre, então apenas continuei pelo que eu achava que precisava ser feito, arrancando várias plantas daninhas costumeiras. De longe eu ouço uma voz familiar, recitando palavras também familiares. Eu tinha escutado aquilo várias e várias vezes durante muito tempo, mas nunca deixava de ser reconfortante. "As misericórdias do Senhor não tem fim, se renovam a cada manhã". Era algo que eu escutava com frequência nessa casa. 

          Apenas levantei o olhar por cima dos arbustos, e avistei a portadora da voz, sentada plenamente na varanda de madeira.

– Oh, Evan! Você está aí! – ela disse

– Senhora Shapiro? – respondi

          Aquela mulher tinha morrido há muitos anos atrás, mas ela não estava exatamente como eu a vi da última vez. Era uma senhora idosa, bem jeitosa e caseira, mas tinha uma alegria contagiante e única, acho que nunca a vi triste na vida. Ela sempre sorria quando me via, e eu morava na casa dela, então ela sempre estava sorrindo. Mas ali não parecia a senhora Shapiro. Parecia mais jovem, os cabelos brancos cujo eu tinha visto pela última vez não estavam brancos, mas sim um castanho com um toque leve de bordô. Sua pele não tinha marcas da idade que tinha, acho que tinha uns 80 anos mas, alí, parecia ter uns 40. Me levantei e bati as luvas, retirando o resto de terra – quando vi que elas estavam sujas além da conta, eu apenas as tirei das mãos.

– Senhora Shapiro, sabe onde está a minha filha?

– Filha? – ela me olhou com um olhar mais confuso do que eu estava – Ora, você é muito jovem pra ter filhos, meu rapaz.

          Então me dei conta que eu não só estava num cenário da minha juventude, como também era um jovem naquele momento. Passei a mão pelo cabelo, e percebi que as longas madeixas loiras que usava na adolescência ainda estavam presas em um rabo de cavalo. Respirei fundo, e dei graças a Deus que o meu bom senso adulto fez com que esse meu antigo visual não se perpetuasse por mais tanto tempo. Caminhei em direção a ela, com calma, e me sentei no chão, aos pés de sua cadeira – algo que era rotineiro no fim da tarde. Aquela situação ainda era confusa demais para mim. Não sabia o que dizer, mas sabia exatamente o que dizer; na verdade, não sabia mesmo 'como' dizer. 

– Eu sinto muito. 

          Foi tudo o que consegui dizer. Foi o que eu não consegui dizer a tempo de vê-la respirar uma última vez.

GratiaOnde histórias criam vida. Descubra agora