Eu sou do tipo que, quando faz uma dieta, retira o miolo do pão, para deixá-lo mais light. No entanto, sempre acabo comendo o miolo do pão depois, separadamente.
Nunca coloquei banca na hora de comer, sempre comi de tudo. Na verdade, se eu vejo uma mosca na minha sopa, eu tiro ela com a colher e volto a tomar a sopa normalmente. Enfim, eu nunca reclamei de barriga cheia ) por eu ser mais fisicamente avantajado do que os outros garotos, mas então eles começaram a crescer, ficaram com o corpo definido, engrossaram a voz, espicharam de tamanho. E eu? Bem, eu continuei como o bom e velho número oito de sempre: uma bola menor (minha cabeça) em cima de uma bola maior (meu corpo), combinados com uma voz de criança jamais desenvolvida de tão aguda e um montão de pelos espalhados pelo corpo.
Eu fiquei para trás. Se na época da escola eu aproveitava meu tamanho avantajado para me defender ou até mesmo intimidar os "nerds", hoje em dia eu sou um cara solteirão, deficiente de autoestima e de um monte de nutrientes e vitaminas por só comer porcarias.
Hoje eu vivo a síndrome de quem passou dos vinte: as crianças que eu vi nascer estão namorando e isso me dói. Já coloquei a culpa (pelo fato de as crianças estarem sendo muito precoces) no fim da TV Globinho, mas estou começando a achar que sou eu que estou ficando retrógrado ou preso na década de noventa. Mas falar disso esta ficando tão polêmico quanto falar de política ou religião.
- A filha da dona Mara está com namoradinho, você viu, Bob? - Dona Tânia me pergunta, enquanto conta o dinheiro do caixa do mercadinho com a mão direita e segura o cigarro com a mão esquerda. Naquele dia o movimento estava ameno, mas sempre poderia aparecer a possibilidade de ter alguma entrega a domicilio.
- Aquela pirralha, dona Tânia?! - exclamo - eu vi aquela menina nascer! Quantos anos ela tem? Treze? Com essa idade eu assistia desenho na TV.
- Quatorze. - a idosa me corrige - Ah, deixa a menina viver, Bob.
- Mas foi a senhora que começou a conversa, ué.
Tânia me analisa com seu olhar penetrante. Ela tem fundos olhos azuis e já tentou disfarçar o fato de o tempo passar para ela com algumas plásticas (as quais ela paga até hoje) e com tinta de cabelo, loiro. Ela é uma senhora viúva, o marido, americano, serviu no exército há muitas décadas e morreu numa guerra. Eu sei que ela ainda sofre por isso, sei que foi por causa disso que ela começou a fumar e a beber conhaque (principalmente conhaque, ela bebe de tudo). Mas Tânia disfarça, disfarça muito bem suas tristezas, seus sentimentos. Eu a admiro. Trocamos algumas farpas ao longo do dia, mas ela sabe que eu a amo como uma segunda mãe. E é isso o que importa.
- Bob, sabe qual é o seu problema? Falta de sexo. Você está precisando de uma boa fo-
- Eu não preciso disso, dona Tânia! - interrompo-a antes que eu a escute falar uma palavra feia. Ela vive falando palavrões, mas eu acho estranho gente idosa falar nomes feios. Ela me mataria se me visse dizendo que é ela é idosa. - Sexo não é comida, que a gente precisa a todo instante pra se manter de pé e sobreviver.
Eu, para disfarçar, pego um espanador e me enfio em um dos corredores do mercadinho. Fico espanando algumas latas de molho de tomate e começo a achar estranho o silêncio de dona Tânia. Estico meu pescoço para fora do corredor e percebo que Tânia estava o tempo todo me fitando por entre as latas de molho de tomate. Eu não gosto quando ela toca no assunto sexo.
Tânia sempre teve a curiosidade de saber se eu já fiz isso . As pessoas tem curiosidade em saber se pessoas gordas fazem sexo, ou se passam a vida na companhia da própria... mão.
Eu já fiz.
Uma vez.
E preferia não ter feito.Foi como algo que a gente compra por estar passando na vitrine e querer gastar um dinheiro que nem ao menos está sobrando na sua carteira. Cabelos cor de chocolate, encaracolados, parecia uma personagem da mitologia grega. Esther Oliveira Viveiros. A Medusa.
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Enquanto o Sol brilhar
RomanceÉ quase impossível escrever uma sinopse sem pensar que pessoas podem vir aqui, ler e achar clichê. Ou melhor, é impossível escrever qualquer coisa sem que as pessoas achem que você está escrevendo sobre si mesmo. Deve ser por isso (dentre outras co...