4. Jana: Adeus, mundo cruel.

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Sempre tive certeza de que tinha os pés no chão,  mas descobri sozinha,  da maneira mas dolorosa possível que minha cabeça sempre esteve nas nuvens.

Semana de provas. Estou tentando não me alarmar. Quero ficar calma,  mas não consigo nem ao menos me concentrar. As palavras parecem dançar diante dos meus olhos.

                Definitivamente,  virar a noite estudando não é uma boa ideia,  penso. 

                E eu,  na reta final do curso de medicina veterinária,  já deveria saber disso.

Marco tristes xis, chutando as respostas em cada questão e sou a primeira pessoa a entregar a prova. O professor de infectologia me olha por cima das lentes de seus óculos, confere se eu escrevi meu nome e matrícula no cabeçalho e me libera.

Tudo o que eu quero é dormir. Pela primeira vez, me dar mal numa prova de propósito vai me fazer bem, pois chegarei em casa mais cedo e poderei dormir como uma pedra pelo fim de semana todo. Sendo assim, tomo o ônibus e vasculho a mochila em busca do telefone celular. Lembro-me de que sempre o coloco no bolso do jaleco e sempre me esqueço de tirá-lo quando me dispo.

Achei.

Decido ligar para minha mãe.  Numa hora dessas ela deve estar em casa,  provavelmente cozinhando para meu padrasto. Fagundes é um pé no saco quando se diz respeito à comida: se ela faz frango, ele diz que quer peixe e vice-versa. Ainda bem que sou vegetariana e me contento com o que eu mesma preparo.

É por isso que essa garota é magra desse jeito.  Só come capim. Não sei como ela sobrevive. — disse meu padrasto, certa vez. Fagundes adorava reclamar do meu corpo, como se eu devesse algo a ele. Meu corpo, minhas regras.

Estou com tanta fome que, todavia, poderia comer uma vaca inteira. Na verdade, não sei se estou mais com fome ou com sono, mas quando mamãe atende, do outro lado da linha, estou pronta para pedir que ela prepare alguns hambúrgueres de soja que deixei congelados.

— Oi, Jana! — mamãe me cumprimenta. Percebo um barulho quase que ensurdecedor se misturando com sua voz.

— Onde a senhora está? — indago — Que barulho é esse?

O motorista que conduz o ônibus onde estou dá uma freada brusca e eu quase dou com a testa no banco da minha frente.

— No salão de beleza. Fagundes recebeu um dinheiro de um amigo e resolveu me fazer uma surpresa. Ouviu, Jana? Seu padrasto está tentando me agradar. Disse até que iria comprar um presentinho para você e para a Tati.

A Tati. Quase caio para trás quando me lembro da minha irmã. Se mamãe está no salão de beleza , quem iria buscá-la na escola? Decido perguntar.

— Fagundes ficou de ir pegar a Tati no colégio. — ela dá uma pausa,  provavelmente para olhar no seu relógio de pulso — Uma hora dessas ela já deve estar em casa.

Em casa. Sozinha com ele. Minha irmã está sozinha com aquele monstro. Não há nem mamãe, nem eu. Apenas ela e aquele homem asqueroso. Eu sei do que ele pode ser capaz. Eu sei que tipo de homem ele é.

Desligo o celular com ódio o suficiente para não me despedir da minha mãe e o enfio de volta dentro da mochila. Olho pela janela lateral do ônibus: ainda faltam algumas quadras para que eu chegue em casa. Perco o meu sono, minha fome e tudo o que me vem à cabeça é preocupação.

Minha irmã, minha adorada irmã, nunca ficou sozinha com nosso padrasto. E se ele fizer com ela o que ele tentou fazer comigo e eu não deixei? Ela é tão nova, tão frágil. Ela não saberia se defender, ela não teria como pedir socorro. Para ele seria ótimo abusar de uma garotinha que não fala e nem ouve e isso me dá náuseas. Ele deu dinheiro para que minha mãe saísse, um plano perfeito. Fagundes sabia que eu costumo chegar em casa à noite.

Eu dou sinal e desço do ônibus. É apenas alguns metros do ponto até minha casa. Se eu correr, posso chegar logo, mas lembro-me de que estou fraca, fraca porque não comi direito, tampouco dormi na noite anterior.

Coloco minha chave na porta e giro a maçaneta. Não há ninguém na sala de estar. Meus passos são lentos, tão lentos que se tornam quase inaudíveis. Eu também não escuto nada, mas depois percebo que o chuveiro do banheiro que há no quarto que Tati e eu dividimos está ligado. Jogo minha mochila em cima da mesa da sala de jantar e caminho até o quarto. A porta está entreaberta e eu a escancaro de uma vez.

Vejo Fagundes espiando minha irmã tomar banho de uma fresta deixada pela porta do banheiro.

Eu uso as últimas forças que tenho para gritar e repudiar aquele verme.

Ele se assusta e disfarça, pega a toalha e finge estar esperando que Tatiana acabe o banho para lhe entregar. Mas é mentira. É mentira. Eu vi. Eu o vi espiando minha irmã e gostando do que estava vendo: é apenas um corpo infantil, as primeiras marcas da adolescência mal podem ser notadas ainda.

— Monstro, imundo! — eu soco seu peito, mas é em vão. Eu quero que ele sinta dor, uma dor pior do que a que eu sinto.

— Eu não estava fazendo nada! — Fagundes se faz de santo e se afasta. Eu caio sentada na cama, meus cabelos soltos cobrem meu rosto. Eu olho para o rosto cínico daquele aborto da natureza e me pergunto como alguém pode ser assim.

                Eu espero que ele saia do quarto e então tranco a porta com a chave. Por fim desabo em lágrimas encostada à porta, amedrontada com o que poderia ter acontecido caso eu não chegasse a tempo.  Tati termina seu banho, se enrola na toalha e eu a vejo, assustada me observando chorar. Ela faz alguns sinais com as mãos, me perguntando o motivo de eu estar triste e eu digo a ela que é porque nós vamos embora.

                Apenas minha irmã e eu.

                E ela, inocente, apenas me abraça, colando seu rosto no meu. E então ela balança o dedo indicador e, por fim, o leva até o olho, fazendo uma carinha triste.  Eu sei o que ela quis dizer: "Não chore".

— É a última vez que eu choro, minha irmã.

E volto a abraçá-la.

Enquanto o Sol brilharOnde histórias criam vida. Descubra agora