Meus olhos estão fixos no calendário:estamos a exatamente trinta dias após a cirurgia que meu amicão (amigo + cão) fez. Por vezes, lágrimas masculinas chegam a cair dos meus olhos quando vejo este - outrora pobre, infeliz e aleijado- animal correndo, ainda com um pouco de dificuldade, pelo pátio do condomínio. Como a própria veterinária, a Jana, disse, foi muita sorte a dele ter me encontrado. Mas me considero um cara de sorte também, pois desde o dia em que este cachorro entrou em minha vida, eu me sinto melhor. Me sinto menos sozinho.
- Que lindinho, Bob! Como é o nome dele? - Dona Tânia indagou da primeira vez que o viu, poucos dias depois que eu o trouxe da clínica. Tânia tinha um sorriso diferente no rosto e ele permanecia enquanto ela massageava os pêlos do canino.
Era um sorriso de conformação. Um sorriso de alguém que sabia que, no fundo, iria ser levada pelo câncer, tão logo. O câncer é uma merda. A conformação mais ainda. Tânia não gostava que eu tocasse no assunto. Por mil vezes, tentei convencê-la de que o melhor seria ela procurar um tratamento. Eu sabia que ela tinha algum dinheiro guardado e, quem sabe, ela poderia prolongar sua vida. Mas o que ela mais fazia era fumar. E fumava mais, como se amanhã fosse o seu dia de partir.
É por isso que eu odeio a conformação. A conformação tira a vontade de viver das pessoas. Ela liquida as esperanças.
- Eu ainda não sei que nome dar a ele. - Observei o quanto Tânia estava concentrada em fazer carinho no animal. - Precisa ser algum nome épico. Alguma coisa que...
- Deixa de viadagem, Bob! - disse ela, sendo a mesma Tânia de sempre - É só um nome de cachorro! Se você for ficar com ele, esse cão precisa de um nome. Bolinha, Ralf, sei lá.
- Eu prometo que vou pensar num nome, Dona Tânia.
E ela me olhou com aquele olhar de "acho bom você me obedecer". E então eu vi ela soprar a fumaça tóxica daquela droga para o ar, e tal fumaça me impediu de ver seu rosto. Ela deu de costas e saiu.
Eu voltei para casa com o cão naquele dia. A lan house em que eu trabalhava durante a noite ficaria fechada durante uma quinzena. Luciano, o dono do estabelecimento, já havia planejado uma grande reforma, com a chegada de computadores novos e tudo o mais. Os viciados teriam de procurar um outro lugar para jogar seus jogos, mas quando tudo voltasse ao normal, eles agradeceriam.
E então, passo minhas noites de folga assistindo TV e comendo pipoca ao lado do meu amigo. Decidi dar um tempo na minha dieta maluca, no entanto, prometo a mim mesmo que quando Luciano voltar com a lan house, eu volto com a minha promessa de emagrecer. Enquanto isso...
Assistimos ao filme Titanic. Já é o final do filme e tal filme eu já vi umas trocentas vezes naquela mesma emissora de televisão. Porém, meu amigo não o viu, e ele parece tão empolgado como final do filme que eu considero que preciso assistir até o final.
A personagem Rose está em cima daquele pedaço de madeira, no meio do oceano congelante e eu acho muita sacanagem ela não insistir que seu amado Jack divida aquele espaço com ela. Também acho sacanagem o Leonardo Di Caprio nunca ter ganhado um Oscar até hoje. O cachorro parece tão empolgado com o filme que ele corre até a TV e fica em pé, com as patinhas apoiadas no criado mudo, latindo. Inconformado, a palavra certa. E ele chora quando Jack parte dessa para melhor, e Rose o abandona naquele imenso azul congelante. Ele não sobrevive por pouco.
Meu amigo cão não se conforma e late, grunhe, depois se senta ao meu lado, com o focinho entre as patas, chorando baixinho. Ponho o pote de ração ao seu lado, mas ele não come. Preocupo-me.
- O que foi, cara? - indago. - O filme já acabou!
Ele me responde, latindo. O filme o abalou tanto assim? Talvez se Jack sobrevivesse...
- É, a Rose foi uma vaca. Mas não fica assim! - Os pêlos dourados do animal deslizam por entre meus grossos dedos. Então ele corre e começa a passar as patas no criado mudo onde coloco minha velha TV. - Tive uma ideia. Vem cá!
Caminho até o projeto de cozinha do meu quartinho e o cão me segue. Eu nunca pensei que seria capaz de cuidar de alguém, já que não cuido nem de mim mesmo. Na verdade, nunca soube nem ao menos ensinar uma pedra a cair no chão. Contudo, se este pobre cão está me obedecendo, quer dizer que ele gosta de mim e dos cuidados que lhe dou. Está na hora de eu recompensá-lo com um nome.
- Vem aqui! - dou um assobio agudo e o animal fica sentado à minha frente. Estou tomando um copo d'água. - De agora em diante, vou passar a te chamar de Jack. O que acha?
Ele dá dois latidos e eu acho que ele gosta da ideia. E eu uso as últimas gotas do meu copo de água para batizá-lo.
Risco mais um dia do meu calendário. Estamos exatamente no dia da reinauguração da lan house de Luciano. Desde o dia em que ele me deu folga, não fui olhar como estava o local, e fico surpreso quando lá chego, para minha primeira noite de trabalho na lan house após o upgrade: computadores de última geração, ambiente climatizado, e eu tinha uma sala só para mim. Agora eu posso ficar mais sossegado, controlando os clientes pelo computador central.
É o emprego dos sonhos pra qualquer solteiro (beleza, eu tenho um filho agora), não que eu não goste do meu emprego no mercado de Dona Tânia. Até por que, se eu tivesse de escolher entre um e outro, eu ficaria com o emprego do mercado, ainda mais agora que Dona Tânia precisa de mim e não percebe isso. Talvez ela tenha percebido isso depois do telefonema que ela meu deu naquela noite.
São exatamente dez da noite. O movimento da lan house continua animado devido a reinauguração. Meu telefone toca e eu quase caio da cadeira. É dona Tânia.
- Bob? Bob é você?
- Sim, sou eu. - respondo calmamente.
- Preciso que venha até aqui. Eu acho que estou... - ela tosse e a ligação cai.
Gente, o que aconteceu com a Dona Tânia? Gostaram do batizado do Jack? Gostaria de agradecer à Mary e a Manu por estarem acompanhando não só essa, mas todas as minhas histórias aqui. Não troco o apoio de vocês por nada.
Abraço!
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Enquanto o Sol brilhar
RomanceÉ quase impossível escrever uma sinopse sem pensar que pessoas podem vir aqui, ler e achar clichê. Ou melhor, é impossível escrever qualquer coisa sem que as pessoas achem que você está escrevendo sobre si mesmo. Deve ser por isso (dentre outras co...