Ponho algum mísero pedaço de pão de forma na boca e mastigo vagarosamente. Vou me contentar com estas calorias, por hora. Penso que preciso ser mais radical hoje quanto a dieta, já que ontem eu extravasei (liberei, joguei tudo para o ar, mandei um foda-se) e enfiei goela abaixo dois pacotes de macarrão instantâneo sabor queijo. Eu mal senti o gosto deles, não pareciam tão saborosos quanto imaginei que fossem antes de eu surrupiá-los de uma das prateleiras do mercadinho da dona Tânia.
Como eu disse superficialmente a vocês, moro de favor num quartinho cedido pela dona Tânia no condomínio cujo ela é síndica. Ele é arrumado, tem a rede onde durmo, uma geladeira com poucos suprimentos, uma velha TV doada pela própria síndica, e um vídeo—game que comprei, zerado, quando recebi os salários dos meus dois empregos.
Então me lembro que preciso comer mais um pouco, ter um café da manhã mais reforçado caso queira me manter de pé até o final do dia.
Olho para cima da minha velha geladeira, ao lado do pinguim, e o pote de biscoitos recheados está ali, reluzente, como um chamado dos anjos. Eu bem que posso ouvir sua voz, soando na minha mente: venha até a mim. Mas volto à realidade e enfio na minha cabeça de uma vez por todas que potes de vidro não têm voz e que preciso emagrecer. É agora ou nunca. Agora vai. Você vai ser magro, Bob. Quem sabe até ter um corpo tão atlético quanto o dos caras que frequentam o parque aquático do condomínio. Abro a lixeira da minha mini cozinha e vejo as embalagens dos miojos que comi na noite passada. Sinto repulsa por mim mesmo durante alguns segundos, mas em seguida, como num impulso, jogo todo o conteúdo do pote de vidro no lixo. Posso até sentir o cheiro de morango do recheio das bolachas, mas resisto. Os moços que ostentam seus corpos sarados no parque aquático não comem bolachas recheadas, tampouco miojo, reflito e saio para mais um dia de cão. Levo na barriga apenas um pedaço de pão e um copo d'água. Tem gente que sobrevive com bem menos que isso. Você vai ficar bem, Bob. Você vai ser magro!
🐾
Abro o cadeado e retiro a corrente que prende a bicicleta. Olho no relógio: sete e meia. Tenho meia hora para realizar o meu "treino matinal" antes de ir para o emprego de entregador. Sei que não vou aguentar mais de dez minutos e...
Ok. Vamos começar. Você já fez isso antes Bob, então concentre-se.
Ponho o pé no pedalo, as duas mãos firmes no guidão. Impulsiono o meu robusto corpo para frente e começo a pedalar. Eu faço isso todos os dias, ora, só que não oficialmente é um treino e nunca faço um percurso tão grande. Mas minha intenção é quinze minutos de ida, mais quinze para a volta. Muitos neste momento pegam seus celulares, batem suas selfies e postam com suas hashtagsfitness, muitas vezes falsas. Mas não quero gastar meu tempo com isso.
Chego ao mercado de dona Tânia empapado em suor, exatamente às oito. Meu estômago dói um pouco, e me lembro que eu não o forrei muito bem no café da manhã. Estou tonto, mas me seguro no caixa. A anciã me olha um pouco surpresa.
— Já tem alguma entrega? — indago, arquejando. Vou até o freezer e pego uma água com gás.
— Não — ela responde, toma em mãos um caderninho e anota o preço da água que acabo de pegar. No final do mês ela vai descontar do meu salário, inclusive com os pacotes de macarrão instantâneo que eu peguei, as bolachas recheadas, etc, etc — Bob, você está bem, garoto? Não vai inventar de morrer aqui não hein? — Tânia põe a caneta bic azul atrás da orelha.
— Por quê? Ah, sim, é que acabo de fazer um treino básico. Ainda estou mantendo a dieta firme e forte. Quero emagrecer.
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Enquanto o Sol brilhar
RomanceÉ quase impossível escrever uma sinopse sem pensar que pessoas podem vir aqui, ler e achar clichê. Ou melhor, é impossível escrever qualquer coisa sem que as pessoas achem que você está escrevendo sobre si mesmo. Deve ser por isso (dentre outras co...