8.Jana: Até que a morte os separe

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Foi preciso colocar uma sonda no cão para que ele pudesse se alimentar. Patrício receitou um remédio para dor e eu o apliquei, amenizando a dor do pobre vira-lata.
Penso no garoto, Roberto, que saiu da clínica desesperado, talvez para conseguir dinheiro e pagar a cirurgia de um cão que nem pertence a ele. Eu admiro pessoas assim e eu juro a mim mesma que cuidarei daquele animal para que ele sobreviva.

Puxo meu telefone celular de dentro do meu bolso e ligo para Ana Paula, que atende, mesmo sendo tão cedo.

- Aninha, você pode trazer a Tati pra cá? É que a clínica está com um paciente especial e eu não quero sair daqui agora. O Doutor Patrício não vai ligar. Também não quero que você passe o fim de semana como babá da minha irmã, não é justo.

- Jana, menina, você precisa dormir, isso sim! - diz ela, me dando uma bronca - Mas como eu já sei como são as coisas aí na clínica, não esquenta. Mais tarde passo aí pra te dar uma força e levo a Tati. Ok?

- Amiga, você não existe! - agradeço e, em seguida me despeço de Aninha.

Afago os pelos dourados do cachorro de Roberto. Ele dorme , um pouco mais calmo devido ao efeito do remédio que lhe apliquei. Patrício chega e toca meu ombro.

- Nós vamos realizar a cirurgia, Jana. - diz ele, convicto.

- O dono do cão já voltou? - pergunto .

Patrício aponta para o lado de fora da clínica e eu vou até a porta de vidro. Primeiro observo o Sol, que me pareceu demorar mais do que o normal para mostrar sua luz naquele dia e, em seguida, noto que há um sujeito na calçada, vestido com uma fantasia de cachorro feita de espuma. Ele pula, dança e distribui folhetos para os pedestres apressados. É Roberto, claro! Eu abro a porta e fico escorada na parede, o observando, de braços cruzados.

- Venham, meus amigos! Venham conhecer a Clínica Sete Vidas! Tragam seus bichinhos para uma consulta! - Roberto faz uma voz engraçada, que fica abafada sob sua fantasia - só não vale trazer a sogra, só porque ela é uma jararaca, ok, amigo? - ele diz para um rapaz, que pega o folheto e ri - Ei, você, gatinha! Não quer vir marcar uma consulta? Brincadeira!

- Roberto? - interrompo o novo garoto propaganda da Clínica Sete Vidas. Ele se vira e caminha até a mim e retira a cabeça de cachorro que faz parte de sua fantasia.- Pode me chamar de Bob. - ele ri de uma maneira tão fofinha que me dá vontade de apertar suas bochechas vermelhas.- Todos aqui me conhecem por Jana. - explico - Só queria te pedir desculpas por ter dado a ideia de ter de sacrificar seu cãozinho. Pode apostar que seu amigo está em boas mãos.- Obrigado! - Bob recoloca a cabeça de cachorro de sua fantasia - Curem o cachorro, e eu trarei mais clientes para vocês.Dou um sorriso e volto para a clínica. Patrício e eu estamos prontos para começar o procedimento cirúrgico. Todos os materiais estão estilizados e as radiografias estão fixadas na parede: o cachorro de Bob tem uma fratura em sua tíbia direita.

O animal é pré-anestesiado. Ele dorme profundamente, tranquilo. Eu, no entanto, estou nervosa e confesso isso para mim mesma. Talvez esse seja o primeiro passo. Penso em Bob, lá fora, e como ele ficará arrasado caso o pior aconteça. O pior não pode acontecer. Não mesmo. Nem Bob e nem o cão merecem que o pior aconteça.

Doutor Patrício começa a incisão e eu apenas observo. O procedimento de osteossíntese consiste na reparação do membro fraturado, no caso a tíbia direita, unindo as duas partes do osso através de um pino. É um procedimento um tanto quanto simples, mas é necessária uma grande habilidade para tal. Eu sei que Dr. Patrício é capaz, com sua vasta experiência clínica e eu apenas o observo e, por vezes o auxilio, mas sussurro em meu próprio coração que gostaria de ser tão boa quanto ele quando estiver formada. No pós operatório, utilizamos talas e bandagens para limitar o movimento do animal, assim evitando futuros edemas.

🐾


- A cirurgia foi um sucesso, Bob - faço questão de avisar ao dono do nosso pequeno e frágil paciente. O rapaz retira a cabeça de espuma e me olha com seus olhos alegres - Mas devo lhe avisar que a recuperação será um pouco árdua e é necessário ter muita atenção.

- Eu vou cuidar dele, Doutora Jana. - Bob está tão animado que sua voz sai de sua boca como um suspiro - Posso vê-lo?

Explico que Doutor Patrício quer falar com ele e explicar os cuidados e falar sobre as últimas burocracias. Fico feliz por Bob ter me chamado de "Doutora Jana". Ainda não sou uma médica veterinária de verdade, mas sei que isso está próximo de acontecer. E no estágio eu sinto que, o melhor de tudo, é ver a felicidade quando dizemos ao dono que seu animalzinho está bem, que tudo foi um sucesso. Essas coisas simples da vida me dão forças, vontades de viver, fazem com que eu me esqueça de todos os meus problemas.

Deveriam existir mais pessoas como Roberto - ou Bob - neste mundo caótico, cheio de guerras, mesquinharia e egoísmo.

Vejo Bob ao lado do leito de seu novo amigo, afagando seus pelos, esperando que ele acorde da anestesia epidural. Meu sorriso se abre como num movimento involuntário dos músculos do meu rosto. Ele está feliz, e se seu cachorro está vivo, é por seu próprio mérito. Foi porque ele se esforçou e lutou para conseguir um meio de fazermos a cirurgia.

Aproximo-me e toco em seu ombro. Bob se vira, de modo que vejo seus olhos inchados, vermelhos. Ele está chorando de emoção.

- Eu ainda não sei o nome dele. - diz Bob.

- Sei que você terá um bom tempo para pensar nisso. Vocês serão bons amigos, e serão felizes juntos. Só tenho a certeza de que esse cão teve muita sorte de você ter cruzado o caminho dele.

Bob me agradece, me abraçando. É a primeira vez que alguém me agradece por eu ter participado, mesmo que pouco, de uma cirurgia, e isso me deixa mais feliz do que já estou.

- Obrigado. De coração.


Enquanto o Sol brilharOnde histórias criam vida. Descubra agora