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Na manhã seguinte, chego na calçada de Rosamaria cinco minutos inteiros atrasada. Não faço de propósito, só perco a hora mesmo. Ela está lá fora em pé, impaciente, o cabelo longo perfeitamente liso, a maquiagem impecável. Ela segura uma garrafa térmica gigante prateada e o celular do mesmo jeito que todas as meninas bonitas fazem: reto na palma da mão, como se ela estivesse prestes a sussurrar fofocas no alto-falante a qualquer instante.
Espero um comentário sarcástico sobre meu atraso, mas Rosamaria fica em silêncio quando abre a porta. Ela coloca as bolsas no banco de trás e a garrafa térmica no meu porta-copos sem pedir permissão. Parece invasivo, ainda mais nesse espaço contido e íntimo. Um espaço que normalmente só compartilho com as pessoas mais próximas: minhas irmãs, Sheilla ou, até mais recentemente, Ariele.
Dou ré na garagem e aumento o volume da música para disfarçar o silêncio estranho. Meus nervos estão à flor da pele, esperando ela dizer alguma coisa. Noto quando ela pigarreia. O aroma amadeirado e acentuado do perfume dela me faz fungar. Quando viramos na rua principal, decido quebrar o silêncio.
— Desculpa o atraso. — Eu me inclino no banco, fingindo que estou me sentindo à vontade. — Espero que não tenha sido muita inconveniência.
Ela passa a mão pelo cabelo.
— Não foi — diz, categórica. — Eu geralmente saio às 7h30. Falei 7h25 porque sabia que você se atrasaria.
Por um segundo, tudo que consigo fazer é encará-la.
— Peraí, quê?
— Ano passado você nunca chegava na aula de História antes do segundo sinal tocar. — Ela olha para mim. — Não é uma ofensa, só uma observação. Meu sangue ferve. É verdade que eu sempre me atrasava para nossa aula de História Avançada de Minas Gerais, mas só porque o armário de Ariele ficava ao lado da sala e eu enrolava ali com ela até o último segundo possível. É um lembrete do qual não precisava tão cedo assim.
— E daí? — ralho. — Por acaso você é fiscal do horário de chegada dos outros?
Rosamaria ri, descontraída.
— É tão fácil te irritar.
Consigo imaginar a impressão que devo ter passado para ela entrando correndo na aula todo dia. Será que ela me via com Ariele ano passado? Será que conseguiu enxergar as rachaduras nesse relacionamento antes de mim? Era por isso que ela me achava uma otária? Uma sensação de vergonha preenche meu peito.
— Sou melhor em chegar na aula de História Europeia a tempo — digo, incisiva. — Mas acho que você não saberia disso, já que não conseguiu uma vaga nessa.
É uma coisa muito esnobe de dizer, mas quero irritá-la e não tenho muitas cartas na manga. Parece funcionar, porque ela coloca o celular de lado e me lança um olhar fulminante.
— Eu consegui a vaga pra aula. Só não quis fazer.
— Quê? Por quê?
— Ah, qual é? História europeia ? Uma aula onde você literalmente estuda como os homens brancos trazem desgraça com as Cruzadas, colonização e catapora? E ainda assim não temos orçamento para oferecer História da África ou História da Ásia. Tá bom. Se esse é o ápice dos estudos acadêmicos que nossa escola tem pra oferecer, eu passo. Pode falar o que quiser da aula normal de História Moderna da srta. Hélia, mas ao menos ela tenta desconstruir essa coisa de hegemonia europeia, e isso é um uso muito melhor do meu tempo.
Não consigo pensar em nada para dar como resposta, e não só pelo fato de que ainda estou tentando entender o que hegemonia significa.
Rosamaria dá um gole satisfeito da garrafa e balança a cabeça.
— Mas, por favor, continue me falando sobre como você é muito mais inteligente do que eu. Não é como se eu não tivesse ouvido isso antes. As pessoas amam pressupor que são melhores do que você quando você é "só uma líder de torcida", como se eu não estivesse consciente pra caralho da identidade complicada que está atrelada ao esporte que eu pratico.
— Eu nunca disse que era mais inteligente do que você — respondo, tensa.
Ela dá uma risada seca.
— Tá. Você insinuou. Mas foi você que foi burra o suficiente pra se deixar levar pela Ariele Ferreira.
Meu coração dá um pulo.
— O que você disse?
Ela ergue as sobrancelhas.
— Eu não fui clara o bastante?
Dou uma guinada com o carro para o acostamento. O veículo que vem atrás buzina e passa por nós. Rosamaria olha para mim como se eu tivesse ficado maluca.
— Vamos deixar algumas coisas claras. — Estou tão brava que minha voz treme. — Um: caso você não tenha notado, te dar carona pra escola é a última coisa que eu quero fazer, então abaixa esse tom escroto pra falar comigo. Dois: posso não ter te dedurado ontem, mas não esqueci o seu trote de merda com o guincho, e nem te perdoei por isso. Não me dê outro motivo pra te odiar. E três: nunca fale mal da Ariele pra mim. Nunca.
Rosamaria está respirando rápido, o rosto franzido com a fúria. A cicatriz na sobrancelha aparece, visível. Eu gostaria de agradecer à pessoa que colocou aquela cicatriz ali.
— Entendido — ela finalmente diz, o peito enchendo. — Mas se você tem direito a algumas regras, eu também tenho. É apenas uma: nunca mais faça nenhuma suposição sobre mim.
— Ótimo — grunho.
Volto para a rua e aumento o som. Nós não falamos mais nada por todo o resto do percurso.

she drives me crazyOnde histórias criam vida. Descubra agora