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A vida entra em um ritmo mais calmo na semana seguinte. Com o fim da temporada, e o troféu ganho, minhas tardes de repente ficam livres. Passo meu tempo no estacionamento com Rosamaria e nossos amigos.
Em uma tarde fria no fim de fevereiro, Rosamaria faz um anúncio tão chocante que nós cinco só conseguimos ficar em silêncio por um tempo: ela casualmente anuncia que vai sair da competição de Atleta do Ano.
— Você enlouqueceu? — Sheilla pergunta enfim.
— Rosa, você não pode fazer isso — imploro. — Você tem trabalhado nisso há meses. Anos , até. As garotas ficam em silêncio, mas Priscila diz:
— Vamos ouvir o que ela tem a dizer. Eu confio na intuição de Rosa.
Rosamaria sorri.
— Bem, eu não tinha nem te contado isso — ela diz, beijando a minha têmpora —, mas eu e minha mãe tivemos uma conversa ontem à noite. O consultório dela vai filmar um comercial novo em breve. Ela quer que o time de torcida participe.
Os olhos de Priscila se iluminam.
— O time?
— O time. Eu . — Rosamaria parece prestes a entrar em combustão. — Ela quer que eu pense em algum tipo de coreografia e slogan para a propaganda do Consultório Belo Horizonte Olhos & Associados.
— Ai, meu Deus! — todo mundo fala ao mesmo tempo.
— Só tem um problema: o que rima com "associados"? — Leia pergunta.
— Invertebrados — responde Gabi, séria.
— Ok, nos preocupamos com isso depois — Sheilla diz. Ela se vira para Rosamaria. — Você aceitou, né?
— Eu me levantei e soletrei. — Rosamaria finge que tem pompons na mão. — S-I-M!
— Meu Deus, seu senso de humor é terrível — digo enquanto nossos amigos caem na gargalhada.
— Mas aqui está a melhor notícia — Rosamaria continua, se inclinando mais para perto de mim. — Ela disse que mesmo que eu não consiga a bolsa de estudos para ir para Busto, ainda podemos dar um jeito. Eu posso ajudar no consultório durante o verão enquanto a recepcionista estiver em um cruzeiro pra Maiorca. Eu vou para Busto de qualquer forma.
— Rosa, isso é incrível! — Priscila solta um gritinho.
— Então vou sair do páreo pra Atleta do Ano — Rosamaria continua, dando de ombros. — Eu não preciso mais disso. Eu não ligo. Além do mais, quero que Sheilla ganhe. — Ela olha para a outra com seriedade. — Eu preciso que você ganhe da Kasiely.
Sheilla se empertiga, batendo continência.
— Será uma honra.

***

Sheilla ganha a competição de Atleta Estudantil do Ano na sexta-feira antes do meu aniversário de dezoito anos. Nosso diretor anuncia a vitória dela durante uma cerimônia especial no ginásio, com Sheilla, Kasiely e os outros dois candidatos atrás dele. Ninguém se surpreende ao ouvir o nome de Sheilla, mas quase todos ficamos surpresos quando Kasiely  joga a cadeira para longe do palco em um surto de raiva. Nem mesmo a amiga dela, consegue acalmá-la, e a sra. Moser precisa arrastá-la à força para a enfermaria. É assim que descobrimos que Moser costumava ser uma vaqueira profissional em rodeios.
A conquista de Atleta do Ano de Sheilla não é tão avassaladora quanto a sua pontuação nos últimos segundos contra DPC, mas todo mundo está feliz por ela. Gabi a presenteia com um buquê de rosas vermelhas. Priscila lhe faz uma coroa de flores. Leia secretamente corta o rabo da Rena Lutadora para Sheilla guardar de lembrança.
No geral, o fim daquele dia é diferente do que esperávamos. Nós estamos felizes, mas é um tipo confortável de felicidade. Esta noite, nós seis vamos nos juntar à minha família em um jantar de aniversário, e depois vamos para um encontro triplo no cinema assistir a Gatinhas & Gatões. Rosamaria já nos fez prometer que conversaríamos sobre as questões problemáticas do filme depois. Acho que nunca vi Gabi ou Sheilla tão empolgadas. Elas literalmente fizeram anotações para não se esquecerem de nenhum ponto de discussão. Sheilla diz que elas primeiro ficaram se pegando no carro, depois se revezaram no marca-texto. As duas são nojentas.
É um dia lindo de março quando saímos do corredor de armários dos veteranos e vamos para o estacionamento. Rosamaria ainda não se juntou a nós; ela disse para Priscila que tinha que mandar um e-mail para a treinadora das líderes de torcida do Busto antes. É estranho ouvir o nome das faculdades aparecendo em todas as conversas. Rosamaria fala sobre o Busto o tempo todo. Gabi já entrou para o VakifBank. Leia está determinada a ir para o Sesi, e Sheilla entrou para o AuPro. Eu ainda estou planejando ir para a UFMG. A única de nós que não fala muito sobre isso é Priscila, mas é porque ela quer tirar um ano sabático. Está pensando em ser doula. Leia teve que pesquisar o significado quando ela contou.
Andamos lentamente até o estacionamento, Sheilla e Gabi de mãos dadas, Leia e Priscila com os braços ao redor do ombro uma da outra. Não é exatamente o grupo com quem eu esperava concluir o meu ensino médio. É melhor ainda.
O clima da primavera é gentil e calmo. O sol dourado em nossos cabelos, os pássaros piando timidamente. No letreiro, lia-se FORMATURA MÊS QUE VEM a semana toda, mas agora alguém mudou para FODA DURA MÊS QUE VEM.
Tem um pulsar ritmado de música vindo do estacionamento. Nós viramos a esquina na direção dos nossos carros e, de repente, a música soa estridente. Um ritmo de tambor. Uma única silhueta ao lado do meu Jetta...
É Rosamaria, segurando uma caixa de som antiga acima da cabeça, vestindo um trench coat por cima do uniforme de líder de torcida. Muito mais bonita que John Cusack. Eu rio com meu coração pleno, porque o que mais posso fazer?
Minhas amigas não parecem surpresos: elas ficam para trás e observam quando eu me aproximo.
Rosamaria abre um sorriso, mordendo o lábio inferior. Ela abaixa o volume e coloca a caixa de som no teto do carro. É aí que percebo que ela nem está tocando a música certa. Não é "In Your Eyes". É a música do Fine Young Cannibals, que ouvimos juntas na primeira semana que dei carona para ela.
Eu sorrio e me pressiono contra ela.
— Por que você mudou a música?
Ela revira os olhos.
— Porque a outra é cafona demais. "She Drives Me Crazy" é muito mais parecido com a gente, "Ela me enlouquece" e tal.
— Onde você conseguiu essa caixa de som?
— Na loja de antiguidades do Balthazar. Cinco contos. O cara teve que me mostrar como usar.
— Incrível — digo, entrelaçando nossos dedos. — Mas você não é alérgica a encenações românticas?
Rosamaria dá um sorriso torto. Ela ergue a sobrancelha, aquela que tem a cicatriz que eu amo tanto.
— Não quando são feitas em prol do puro romantismo. E não quando é o fim de semana do seu aniversário. Além disso, não posso deixar você sair dessa melhor que eu.
— A-ham — falo, me inclinando na sua direção.
Ela me beija. Nossos amigos começam a gritar no fundo.
— Você não existe — falo para ela.
Seus olhos brilham.
— Não existo mesmo, né?
— Cala a boca.
Eu a puxo pelo tecido do casaco e a beijo de novo. Perto do fim da música, Rosamaria põe a mão na minha boca, dá uma voltinha e coloca para tocar de novo. Solto uma gargalhada.
— Tem que criar o clima?
— Óbvio — ela diz, e me beija de novo.
Considerando que assisti à cena da caixa de som de Digam o que quiserem um milhão de vezes, era de se esperar que eu não sentiria um calorzinho na barriga quando a minha namorada líder de torcida a reencenasse para mim no estacionamento da escola.
Mas não é o caso.

FIM.

she drives me crazyOnde histórias criam vida. Descubra agora