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Minhas irmãs me acordam na manhã de Natal colocando BooBoo e Picles em meu peito. A princípio, enquanto saio do meu estado de sono, tudo o que sinto é a pressão gostosa de patinhas de gato. Só que aí Picles decide colocar a bunda na minha cara.
— Ai! Qual é! — grito, atirando as cobertas para longe. Picles sai correndo e se esconde embaixo da minha escrivaninha. BooBoo continua na cama, lambendo as patas.
— Feliz Gatal! — Renata diz. — Você acha que o Gato Noel veio?
— É isso mesmo, BooBoo, não deixe ninguém te assustar — Marcela diz, acariciando onde ele está se espreguiçando no meu travesseiro extra. — Vamos lá, Ca, hora de abrir presentes!
— Ainda não estou a fim — digo, virando as costas. — Me deixem dormir.
Não quero levantar e encarar o dia, não quando ainda estou sentindo o peso de ontem no coração, mas minhas irmãs praticamente me arrancam da cama. Renata enfia uma touca de Papai Noel na minha cabeça e as duas me levam para o andar de baixo, onde mamãe e papai tomam café com pijamas combinando.
— Olha só como estamos fofos! — papai diz, esticando os braços para que eu veja a estampa de elfo na blusa verde do pijama.
— Feliz Natal, querida! — mamãe diz, me embalando em um abraço. — Você e Rosamaria se divertiram ontem? Se beijaram embaixo do visco?
Minhas bochechas coram, mas não pela razão que eles acham.
— Vocês duas são um casal bonito — papai fala. — Ano que vem vamos arrumar pijamas combinando pra vocês também.
— Podem parar? — Meu tom é azedo mesmo quando não quero que seja. Sinto que posso chorar a qualquer momento.
— Toma, sua pirralha — Marcela diz, pressionando uma xícara de café e um biscoito de canela na minha mão. — É melhor tomar isso. Vire essa cara feia de Grinch para o outro lado.
Nós abrimos os presentes em turnos. Renata se espanta com o seu primeiro perfume, um presente meu e de Marcela. Mamãe solta um gritinho com o chapéu novo de jardinagem que papai escolheu para ela. Marcela fica com os olho cheios d'água quando desembrulha os gorrinhos que Renata tricotou para Picles e BooBoo.
Quando pego um presente grande e macio, mamãe se inclina para a frente na poltrona.
— Aaah, esse é o nosso favorito!
Rasgo o papel de presente, que revela uma jaqueta jeans vintage, que tem até botões de cobre, com um colarinho de pelo de carneiro.
— Uau — falo, passando a mão no material. — Eu realmente amo...
— Vire do outro lado! — papai diz.
A parte de trás foi bordada com o desenho de uma bola de basquete. Em uma letra cursiva, as palavras "eu dou a volta por cima" flutuam ao redor.
— Nós mandamos fazer especialmente pra você! — mamãe conta.
— É fofo, não é, Carol? — Marcela pergunta, em um tom de ameaça que diz "não acabe com a alegria deles".
Passo meus dedos pelo bordado cursivo. Para minha vergonha, minha garganta se fecha e meus olhos enchem d'água. As lágrimas caem antes que eu possa escondê-las.
— Carol ? — minha mãe chama. — Está tudo bem, amor?
Preciso dar tudo de mim para me controlar. Eu não vou arruinar a manhã de Natal admitindo que a minha resiliência é de fachada, que eu literalmente comprei a confiança pela qual eles estão parabenizando.
— Eu só fiquei emocionada. Obrigada, gente.
Mamãe e papai sorriem um para o outro. Minhas irmãs trocam um olhar curioso, mas não dizem nada. Forço um sorriso e coloco a jaqueta por cima da blusa do pijama. Cabe quase perfeitamente.

***

Os últimos três dias de dezembro são os dias em que os Daroit colocam todo o estoque de decoração de Natal em promoção, então eu e Sheilla nos planejamos para ir comprar coisas a preço de banana no Empório. Estamos na metade da prateleira de itens especiais, distraídas por um suéter de Chanucá que talvez Leia goste, quando ela diz algo que me assusta:
— Então... eu vi Priscila ontem no Munny, e ela me disse que Rosamaria e você resolveram dar um tempo.
O tom dela é pesado, como se ela estivesse esperando para falar sobre isso a tarde toda. O ar entre nós muda imediatamente. Eu abaixo o suéter de Chanucá e me esforço para encontrar os olhos dela.
— Você vai mesmo me obrigar a falar sobre isso? — pergunto. — Aqui?
— Sim. — Ela tira o suéter da minha mão e o coloca de volta na prateleira. — O que tá acontecendo? Pensei que você gostasse dela. E é óbvio que ela gosta de você.
Engulo em seco.
— Eu gosto mesmo dela.
— Mas?
Eu sei que Sheilla não vai ficar feliz com o que digo a seguir.
— Mas ainda estou tentando superar a Ariele.
Sheilla faz uma careta.
— Sério? Ainda?
— Dá pra você não me humilhar por isso também, por favor? Eu estou tentando ser sincera com você. — Minha voz estremece. — Sei que você a odeia. Sei que todo mundo odeia. Eu estou tentando odiá-la também, mas não consigo .
Deslizo até o chão, puxando os punhos da minha jaqueta jeans nova por cima das mãos. O piso de azulejo é frio sob as minhas calças.
Sheilla desliza para se sentar ao meu lado. Nós ficamos encarando os globos de neve na estante à nossa frente.
— Você tem razão. Isso foi insensível da minha parte. Me desculpa. — Ela pausa. — Eu não odeio a Ariele. Só odeio o jeito que ela fez você se sentir. E odeio que tudo que você fez nos últimos meses tenha sido por causa dela. É como se você nem fosse mais você inteira. Você é só essa... reação .
Ela soa como Marcela. Você é uma insegurança ambulante... Eu mantenho meu olhar nos globos de neve e tento relaxar minha mandíbula.
— Uau, Shei, que ótimo sermão. Muito obrigada mesmo.
Os olhos dela encaram o meu perfil.
— Eu não estou tentando passar sermão. Estou tentando te falar a verdade.
— Você quer falar da verdade? — Eu me viro para ela. — Ótimo. Vamos falar sobre isso. Vamos falar sobre a Gabi.
As pupilas dela dilatam.
— Não tenho nada pra falar sobre a Gabriela.
— Você tem muito o que falar sobre a Gabi.
— Gabriela é nossa amiga. Eu não posso gostar dela assim do nada.
— É claro que você pode, você só não está se permitindo isso. Você tem literalmente tudo a seu favor. É a capitã do nosso time, tem notas ótimas, vai ser aceita por um milhão de faculdades, mas está se segurando quando se trata da Gabi mesmo que ela obviamente também goste de você.
— Você não sabe se ela gosta de mim — ela retruca.
— Nenhum de nós vai saber até você chamar ela pra sair. Pare de ficar com tanto medo.
— Pare de ser palestrinha, cara.
— É você que está sendo palestrinha comigo!
Nossas vozes ficam aceleradas. Nós nos afastamos uma da outra, bufando. A respiração de Sheilla fica muito alta e irritada. Eu não consigo parar de cerrar meus dentes.
— Olha — Sheilla diz por fim, o tom sério de novo. Ela cruza os tornozelos magrelos. — Você está certa. Eu sou uma covardona quando se trata da Gabi. Eu não sei como fazer isso. Eu não sou boa em fazer coisas em que não sou boa naturalmente.
Isso me faz rir, o que quebra um pouco a tensão.
— É o quê? — pergunto.
— Namorar! — ela exclama. — Não sou boa em namorar! Escola é fácil. Basquete é fácil. As candidaturas pra faculdade são até divertidas. Mas como diabos eu vou entender romance quando parece a porra de uma língua estrangeira?
— Ai, meu deus. — Não consigo evitar, ainda estou gargalhando. — Você é uma CDF total que não sabe como ser ruim em alguma coisa.
Ela desce uma das mãos pelo rosto.
— Cala a boca.
— Como é que alguém pode ser ruim em namorar, Sheilla?
— Foi difícil pra você, não foi? Eu não quero me machucar assim.
Isso me faz calar a boca. Nós voltamos encarar os globos de neve. Uma mulher mais velha com um colar de contas roxas passa por nós com o carrinho de compras, sorrindo como se fosse completamente normal ficar sentada no chão no meio de um corredor do Empório.
— Me desculpa — Sheilla fala de novo. — É só que... às vezes parece que seu namoro com a Ariele te transformou em algo que você não é. Você sempre foi tão certa de tudo e, de repente, você não era mais.
— É — concordo, pousando a cabeça em minhas mãos. Eu não estou mais brava. Sei que ela está certa. — É verdade.
— Você entende que ela é ruim pra você, né? Tipo, sabe, você consegue objetivamente ver isso?
Meu peito parece pesado de repente.
— Eu não sei como superar ela.
— Isso é porque ela fez com que fosse impossível pra você seguir em frente — Sheilla diz, gentil. Ela pausa. — Mas você também tornou isso impossível.
Olho para ela. Nós duas temos olhos castanhos, mas os de Sheilla sempre foram de um tom mais escuro, mais sólido do que a minha cor desbotada. Vê-los agora me faz sentir segura.
— O que eu faço?
— Você corta o laço — ela diz, simplesmente. — Seja lá o que isso significa pra você. Se tiver que bloquear o número dela, faça isso. Se precisar escrever uma carta dramática e queimar depois, faça isso. Mas você tem que superar, cara.
Minha garganta se aperta do mesmo jeito como tem acontecido nesses últimos dias.
— Não sei se consigo. É tipo... eu estou agarrada nesse último retalho dela e, mesmo que eu saiba que é um retalho ruim, ainda é alguma coisa. No instante que eu largar esse retalho, não vou ter mais nada.
Sheilla se aproxima mais. Ela dá um chutinho no meu tênis.
— Você não vai ter nada dela, Ca, mas ainda vai ter você mesma.
Eu inspiro, expiro. Minha resposta automática é dizer "eu mesma não é o bastante", mas não consigo dizer isso em voz alta. Não quero a pena da minha melhor amiga e não quero que a minha fossa seja um peso para ela. Não é trabalho dela preencher o buraco no meu coração.
— Vamos — chamo, me levantando. — Vamos pegar um café. A gente prometeu pro Victor um doce da Doce Noelle.
Dá para ver que Sheilla está preocupada comigo, mas ela não força a barra. Eu não falo mais sobre Gabi também. Nós entramos no carro dela e colocamos a playlist com as melhores músicas dos anos oitenta e noventa a caminho da doceria, mas não estou muito presente. Estou presa na minha própria mente, tentando descobrir como deixo a memória de Ariele para trás.

she drives me crazyOnde histórias criam vida. Descubra agora