17

1.6K 129 1
                                    

Nunca imaginei o quanto o processo de cura seria mundano. Minhas semanas seguintes são preenchidas com ajudar mamãe no jardim, aprender a tricotar com a Renata e trabalhar no Chaminé para Marcela. Eu lavo a louça, pratico arremessos livres e faço uma lista dos meus filmes favoritos na ordem para discutir sobre isso depois com as minhas irmãs. Eu ajudo Sheilla a devolver presentes de Natal e falo sobre os meus sentimentos sem ela precisar me pedir. Não há nada de glamoroso nisso, mas digo a mim mesma que preciso continuar.
A escola vira um buraco do inferno. Boatos sobre a acusação que Kasiely fez no ginásio se espalharam, e mesmo que ninguém tenha visto a foto que ela mostrou para Rosamaria, todo mundo encaixou as peças sobre nós termos "terminado" porque eu estava com Ariele. As pessoas ou desviam de mim ou me lançam olhares fulminantes nos corredores. Minhas próprias colegas se recusam a me passar a bola durante os treinos. Só as gêmeas Pavão estão dispostas a ficar por perto, mas só porque querem uma entrevista para o jornal. É uma experiência muito sóbria e esclarecedora, ver como as pessoas podem rapidamente mudar de adoração para ódio.
A própria Rosamaria é cordial, mas distante, e imito o comportamento dela. Nós sorrimos com educação uma para a outra no corredor, mas no geral ficamos na nossa. Kasiely, é claro, fica feliz em incentivar os boatos sobre o que deu errado entre nós. Ela planta mais sementes sobre a sexualidade "falsa" de Rosamaria, mas Rosamaria não está nem aí. Não sei se é porque ela não se importa mesmo ou se é porque está ainda mais focada no prêmio de Atleta do Ano agora que estamos perto das indicações. Torço para que eu não tenha arruinado as chances dela.
Sheilla e as meninas são leais até a alma. Nós nos sentamos no meu carro em uma tarde e conto tudo a elas. Sheilla já sabe, claro, mas é um alívio finalmente me explicar para Leia e Gabi. Confesso toda a verdade sobre os últimos meses, mesmo que eu ainda tenha vergonha do que aconteceu. Já contei essa história várias vezes, mas não fica mais fácil.
— Desculpa ter mentido pra vocês — digo, me forçando a manter contato visual. — Me desculpa por ficar tão bitolada com a minha ex. Sinto que isso atrapalhou nossa experiência do último ano. — Esfrego meus olhos. Sheilla me passa um guardanapo do porta-luvas. — Vocês são minhas melhores amigas. Quero que nosso último semestre seja incrível.
Gabi se inclina para a frente e entrelaça os dedos dela com os meus.
— Nenhuma de nós é perfeita, Carol. Bom... exceto a Sheilla. — Ela sorri sincero, e Sheilla estreita os olhos, entrando na brincadeira. — Obrigado por falar a verdade. Sinto muito que você estivesse sofrendo tanto. Eu te amo e quero que você seja feliz.
— É, é isso — Leia acrescenta. — Sem contar que eu conheci a Pro por causa dessa coisa toda, então como é que vou ficar brava?
Sheilla dá um tapinha nela, e a risada que se segue é exatamente o que eu preciso.
Nós quatro passamos todos os sábados no cinema. Na noite em que passa Além dos limites, Leia traz Pri junto e a beija na fila da entrada. Eu me viro para Sheilla e Gabi para trocar olhares, mas elas nem estão prestando atenção; estão rindo de alguma coisa no celular de Gabi. Quando Sheilla estica o braço para dar um soquinho de flerte no braço dela, os olhos de Gabi se acendem. Finjo que não noto quando ela insiste em pagar pelo refrigerante de Sheilla. Estou tranquila em ficar de vela essa noite.
Quando temos o dia de folga na escola por causa do feriado de Martin Luther King, eu me sento de pernas cruzadas no chão do meu quarto e leio cada carta que Ariele já me mandou. Algumas delas me fazem chorar. Deixo que as lágrimas venham e digo para mim mesma que não tem problema que meu coração ainda esteja dolorido. Depois de ler todas elas, Marcela e Renata me ajudam a queimá-las no quintal. Eu respiro fundo, para dentro e para fora, e observo as faíscas que restam flutuarem ao vento.

***

Os esportes de primavera começam no fim de janeiro, porque aparentemente janeiro já se qualifica como primavera aqui. Observo as meninas do futebol correndo pelo gramado toda tarde quando saio do treino, os pulmões delas
certamente ardendo com o frio. O início da temporada de futebol sinaliza o fim da minha, o que é difícil de acreditar. Significa que estamos chegando ao fim da minha carreira de esportes na escola. Também significa que estamos a apenas algumas semanas do campeonato do distrito e, considerando o recorde de vitórias de Belo Horizonte, parece que definitivamente vamos participar — e que Uberlandia, cujo time permanece invicto exceto pela vez em que perderam para nós no Clássico de Natal, vai ser nosso oponente.
Sheilla e eu ficamos até mais tarde no treino em uma noite, passando a bola de um lado para o outro enquanto ela estuda uma nova jogada que quer tentar com nosso time. Nós não vemos o treinador Guimarães há duas semanas, Sheilla tem liderado o time sozinha. Essa noite, ela alterna entre consultar a jogada no celular, me direcionar nos passos e desaparecer em meio às Visões de Sheilla. Eu observo com um novo interesse, deslumbrada pelo modo como o cérebro dela funciona.
— Você já terminou de escrever a redação da sua candidatura geral? — pergunto quando estamos andando pelo estacionamento. Está um frio congelante do lado de fora, e minha respiração faz fumaça no ar quando falo.
— Sim, acabei, mas ainda não mandei. Por quê?
— Sobre o que você acabou escrevendo?
— Uma anedota sobre minha família visitar o Museu de Arte Ruim e sobre como Victor fingiu ser um guia turístico em uma pintura de polvo... Que foi? Que cara é essa?
— Sheilla, você tem que escrever sobre ser a treinadora do nosso time. — Eu já falei que não quero me gabar. Eu não quero ser só "eu eu eu". Eu paro de andar. Ela para também. Nós nos encaramos perto dos nossos
carros.
— Que foi? — Sheilla repete, os dentes batendo de frio.
— Eu te amo — falo com firmeza. — Você é uma força da natureza. Acho que você devia parar de se esconder das pessoas.
Ela pisca, parecendo completamente atordoada.
— Quê?
— Você sabe que pegar o lugar de treinadora sendo uma aluna e guiar seu time para uma temporada de vitórias é bem extraordinário, certo? E ainda mais porque você continua tirando nota máxima em tudo. É isso o que você precisa falar para os avaliadores das faculdades. Precisa deixar que eles te vejam de verdade. A você real, a você genuína. Autenticidade, lembra?
Sheilla engole em seco e desvia o olhar, envergonhada.
— Tenta — imploro, meus braços tiritando no frio. — Só tenta escrever a redação. Prometo que vou falar se parecer que você está se gabando demais. Mas imagine se, tipo, eu ou Gabi ou Leia escrevêssemos a redação! A gente ia se gabar de você a porra do tempo inteiro!
— Você acha que Gabriela se gabaria de mim? Eu reviro os olhos.
— Me diz você.
Ela dá um sorriso torto.
— É. Ela faria isso.
— Então você vai tentar?
Sheilla respira fundo.
— Vou tentar. Provavelmente vou te odiar o tempo todo, mas vou fazer. — Eu adoro ser odiada. Tem sido meio que a minha especialidade nos últimos tempos...
Nós somos interrompidas por um apito alto por cima do meu ombro.
Alguém destranca o carro ao longe. Rosamaria está arrumando a mochila em cima do ombro. Ela usa uma japona ridiculamente grande.
Eu olho de volta para Sheilla.
— Eu acho que vou...
— Isso. Vai lá.
Ela não precisa falar duas vezes. Eu me apresso pelo estacionamento, minha mochila quicando contra o casaco. — Oi! Rosa!
Rosamaria se vira. A expressão dela se suaviza mais do que eu poderia esperar.
— Oi. O que você ainda está fazendo aqui?
— Ajudando a Sheila. Está ficando meio intenso com o jogo do DPC vindo aí.
Rosamaria endurece, e eu me sinto uma idiota por mencionar a palavra proibida.
— Intenso porque é o fim da temporada — esclareço. — Não porque estou preocupada com ganhar.
Ela inclina a cabeça, me estudando.
— Ah, é?
— É. — Sorrio para ela. — Então... belo casaco. Esses não são feitos pra pessoas que moram em, tipo, Curitiba?
Ela estreita os olhos.
— Eles são feitos pro frio, babaca — rebate.
— Frio do Ártico, menina de Santa Catarina.
— Acho que não tem nenhum jeito de consertar esse seu senso de humor horrível durante o seu processo de cura.
— Infelizmente isso não é parte do acordo. — Eu sorrio até ela revirar os olhos. Aquece os meus ossos. — Então, como você está? Pronta para o Atleta do Ano?
— Estou, sim. — Os olhos dela adquirem aquela faísca familiar. — Eu estava fazendo mais uns pôsteres com a Priscila.
— Eu amei todos os seus pôsteres até agora.
— Puxa-saco. — A boca de Rosamaria sobe em um canto. — Acho que você já sabe que Kasiely está de volta com as merdas dela com todos esses rumores sobre mim?
Preciso dar tudo de mim para não dizer algo horrível sobre ela. Não é disso que Rosamaria precisa.
— É. Sinto muito que você tenha que lidar com isso. Sair do armário já é difícil. Você não deveria ter que provar nada pra ninguém.
— Não é sua culpa. Ela encontraria outro motivo se precisasse.
— Rosamaria, posso te perguntar uma coisa? — Faço uma pausa, tentando formular a pergunta. É algo que tenho me perguntado há semanas, mas é delicado mencionar. — Aquela foto que você tem no celular, de você e Kasiely se beijando ano passado, por que nunca mostrou pra ela? Pra qualquer pessoa? Basta olhar para aquela foto que Kasiely nunca vai poder te torturar de novo.
Rosamaria me encara. A expressão dela é muito séria.
— É isso que você acha que eu devo fazer?
Examino os olhos dela. Fica claro que ela já teve essa ideia antes. Talvez até a tenha considerado.
— Não — falo, firme. — Eu não acho que você devia fazer isso. Você acha?
— Não. Eu não mostrei e nunca vou mostrar.
Engulo o nó na minha garganta. Eu olho para ela e me pergunto se é assim a sensação de amar alguém por ser quem é de verdade. Por ser como é lá no fundo, com sua ética e a determinação.
— Rosamaria . Você é uma pessoa bem incrível. — Minha voz está trêmula com a emoção. Qual é a dessa ideia de ficar emotiva com todo mundo essa noite?
Rosamaria pisca. O olhar endurecido dela se amaina.
— Não sou, Carol. Só estou tentando ser melhor do que eu era antes. — Ela faz uma pausa. — Assim como você.
Nós sorrimos uma para a outra. Não quero terminar a conversa, mas meu corpo está formigando com o frio, ansiando pelo aquecedor do meu carro. Além do mais, ainda estou me recuperando.
— Boa sorte com o Atleta do Ano — digo, me afastando dela. — Vou torcer por você.

she drives me crazyOnde histórias criam vida. Descubra agora