Eddie definitivamente não era um garoto prodígio. Não se considerava sequer um grande crânio, e suas habilidades com anagramas eram praticamente nulas. Porém, não havia muito o que fazer enquanto Boris dirigia o lata-velha num caminho conhecido. Eles não tinham dinheiro para pagar mais uma noite na pousada, por mais que aquele hostel não passasse, na verdade, de uma espelunca. As cem pratas foram o suficiente para bancar três noites, e agora eles precisariam se virar. Voltar para casa ainda não parecia uma opção tão excitante e quando Pavlikovsky sugeriu a ideia para Kaspbrak, o garoto suspirou pesarosamente e entregou-lhe um olhar tão lúgubre, uma súplica silenciosa presa entre seus lábios ressecados. E Boris, compreensivo, simplesmente assentiu, ele tinha entendido o recado. A solução veio num insight maluco – e de praxe –, do cacheado: eles iriam acampar. Não tinham barraca nem uma lanterna e muito menos condimentos, porque o que eles haviam comido durante o dia tivera uma origem de índole um pouco duvidosa, isso porque dizer "criminosa" soa talvez um pouco rude demais e essa ainda não é a intenção.
De qualquer forma, enquanto Boris dirigia, Eddie tinha no colo o mesmo mapa que Pavlikovsky havia desgrudado da parede da pausada e uma caneta apoiada em seu lábio inferior. Sua feição estava estranhamente focada no canto da folha e ele tentava construir alguma coisa. Tentou pensar num anagrama para meupedaçoperdido, mas a palavra era grande demais e ele não conseguiu chegar a lugar algum. Por isso, decidiu diminuí-la e abaixar também as suas expectativas. Ficou com a palavra falta, tentou filtrar os anagramas que faziam sentido e seu resultado foi fatal. Fatal. A falta era fatal. Seus olhos mal piscaram, mas Boris olhou para Kaspbrak em relance e percebeu que sua expressão esbanjava um quê de eureka. Não era os sete mares, mas a falta era fatal. Eddie ponderou a conclusão de maneira tão cirúrgica que metaforicamente podia sentir um sangue escarlate e fluido escorrer de seus ouvidos, como se algo dentro dele tivesse sido rompido. Ele nunca havia parado para pensar na dor desta forma, e é algo tão óbvio que Eddie poderia sentir raiva de si mesmo por estar surpreso com algo tão frívolo. No entanto, as coisas realmente são mais simples e mais absolutas do que nós pensamos que são. O que é a falta e o que é a perda? Quando se trata de alguém, elas estão alinhadas. Algo estava ali, mas não está mais. Viu só como é simplório? Mas isso é a ponta do iceberg, ler o dicionário não faz com que a sensação queime por dentro da pele como se sua parte interna estivesse incendiada. A morte no dicionário é inofensiva, e na vida, ela arde.
Eddie até então ainda não havia experimentado a morte, então esse sabor agridoce ainda espalhado pela sua boca tal como se tivesse inundado suas papilas, era algo arduamente novo. Tal como um solo desconhecido, andar por este terreno fúnebre era algo tão quanto desesperador, e o pior ainda, para Kaspbrak, era a certeza de que não tinha volta. Por isso a falta é fatal, é o traçado limitante, a linha de chegada, o marco de que algo chegou ao fim, o risco do vazio, a correnteza do nada. Ao fim da especulação, Eddie chegou à conclusão de que o jogo de palavras trouxera um sofrimento agudo, acentuado, e que talvez, em uma próxima vez, fosse melhor investir em xadrez ou dama. Rabiscou o canto da folha e levantou o olhar para a janela meio aberta, a caneta saltou de entre os seus dedos, rolou para o seu colo e deste para debaixo do banco revestido numa capa acinzentada, mas ele não percebeu ou preferiu fingir que não. Se ele estivesse ciente, teria que se contorcer para pegar, e não queria fazer esforço algum agora.
A luz das seis da tarde começara a cobrir o ambiente de uma forma reconfortante. Uma chama alaranjada, enérgica e inebriante. Seu reflexo sob a pele de Eddie, bronzeada, deixava-a num aspecto dourado de ouro puro, e quando Boris deu-se ao luxo de notar, sentiu as pontas de seus dedos tremerem e formigarem numa ansiedade e vontade súbita de tocar a pele áurea e flavescente do garoto ao seu lado. Algo dentro de si despertou num calor afobado, quase como se suas digitais estivessem inflamando com a textura gostosa do corpo alheio. No entanto, ele engoliu em seco e voltou sua atenção a estrada, pensando com um pouco de desgosto que a sua pele mesmo não brilhava como a de Kaspbrak. O reflexo fulvo da luz não fazia sua cor parecer mais atrativa do que era, o pálido tornava-se um amarelo pastel e sem graça, algo morto e tedioso. Uma parte sua sentiu-se aborrecido com o fato de que Eddie não teria como olhá-lo e sentir a mesma vontade efervescente nem a urgência malcriada de senti-lo.
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O Amor é uma Vadia | Boris Pavlikovsky
Roman pour Adolescents"Eu prometo a mim mesmo não voltar aos velhos hábitos, porque a decepção amorosa está clara e o amor é uma vadia". Two Feet