Espectativas

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A casa estava em ordem agora. Bom, estava ao menos limpa. Mas o ar de desolação e solitude ainda impregnava cada cômodo. Eu fazia o impossível para ficar cada vez mais tempo longe dela, fazia todas as refeições comunitárias, comprei poucas coisas no minimercado existente (com um nome ridículo, O Leão do Norte) e tentei construir uma rotina.

Fui às reuniões e me alistei aos voluntários. Cada dia ficava com uma equipe diferente. Limpei detritos, reguei sementes, tive uma aula de construção antes de encarar minha primeira parede, que teve que ser derrubada porque ficou muito torta, aos sons de riso da minha equipe.

Visitava Haymitch, embora não tivesse certeza se ele sequer sabia que eu estava lá na maioria das vezes.

E eu a via, indo para floresta cedo. Voltando à tarde. Sem perceber, eu a perseguia com os olhos e não tinha um momento que não pensava nela, sempre pensando onde ela estava.

{...}

Ao fim de um dia no pomar, me olhei no espelho após o banho e fiz uma careta de dor. Meus braços, rosto e nuca estavam muito vermelhos e já percebia algumas sardas no ombro e no nariz. A pele estava muito sensível. Até o leve roçar da camiseta fez doer minhas costas e me resignei a dormir com dor hoje. Que ótimo, pensei, mais um motivo de insônia. Minhas noites estavam sendo terríveis. Mesmo muito cansado e a base de medicamentos, não conseguira dormir bem. E quando dormia, era acordado por ecos dos gritos dela. E meu estômago se revolvia de vontade de ir até lá, mas a cabeça tinha medo e até agora a cabeça tinha ganhado.

Uma serie de batidas na porta me alcançaram quando eu já estava na cozinha, fervendo algumas folhas de menta que tinha achado no jardim atrás da casa.

-Peeta?

Era ela.

-Posso entrar?

Sua voz soava abafada do outro lado da porta.

Ela estava começando a bater na porta novamente quando a abri, a desequilibrando para frente.

-Opa – disse, enquanto segurava seus pulsos – você está bem?

-Sim – ela estava corada? – só me pegou de surpresa.

Dei um sorriso torto e fiz um convite mudo para ela entrar. Ela carregava uma sacola de tecido que parecia pesada.

- Fui ao leão do norte essa semana – disse ela, enquanto carregava a sacola pra dentro de casa – e vi que lá não tem muita coisa.

- É a primeira vez que vai lá? -perguntei assombrado.

Ela não respondeu e colocou a sacola em cima da mesa.

-Mandei vir da capital – disse enquanto tirava da sacola farinha, açúcar e um pacotinho pequeno, que não identifiquei. Chegando mais perto, vi que era fermento químico.

Olhei pra ela com surpresa, comecei a agradecer, mas ela não deixou, fazendo não com os dedos enquanto se afastava de mim.

- Como sabia? – cresceu em mim uma esperança, de que ela me perseguia do mesmo modo que eu perseguia a ela.

Ela deu de ombros e me olhou e pela primeira vez desde que cheguei aqui, pude ter um vislumbre da antiga Katniss.

Eu não disse nada. Nos encaramos firmemente e quando a tensão estava insuportável, desviei meu olhar primeiro e ele foi parar nos ingredientes que ela trouxe. Manuseei a farinha, era branca e fina, de boa qualidade. O açúcar também, mas o fermento estava errado. Passei de uma mão a outra e imaginei que poderia fazer bolos com ele e começar a confecção de um fermento vivo para o pão.

- Teremos pão amanhã?

- Gulosa – sorri para ela -preciso de ao menos três dias. Vou precisar crescer uma isca primeiro, um fermento vivo.

- Os ingredientes não são esses? – ela parecia desapontada

- Só o fermento, mas está tudo bem – ela coçou novamente a nuca, parecendo embaraçada – mas isso na verdade é ótimo, pois me dará a oportunidade de fazer uma receita antiga.

Ela riu de lado, mas logo parou. – Eu peguei um catálogo na estação de trem. Você poderá pedir o fermento certo. Todos os dias chegam coisas da capital.

A boca dela abriu para outra pergunta, mas ela a fechou rapidamente e desviou os olhos.

- Tenho me consultado cm o Dr. Aurelius toda semana – disse, ainda olhando fixamente a parede – ele me disse que para uma melhor evolução do meu tratamento – ela torceu a boca, sem perceber- eu deveria socializar, me tornar um "membro da comunidade "– continuou fazendo aspas com as mãos e virando os olhos.

Percebi o que ela queria me perguntar e a respondi com ternura, abaixando a voz.

- Eles foram legais comigo – ela me olhou, com olhos marejados e percebi que estava com medo – no começo teve alguns olhares estranhos, mas a velha Sae deu-lhes uma reprimenda – ri, chegando mais perto dela – e eles logo me acolheram. Cada braço é necessário aqui.

Estou bem perto dela agora. Sinto o cheiro de limão e alecrim de sua pele e percebo que estava segurando a respiração. Ela lambeu os lábios de modo inconsciente e chegou ainda mais perto.

- Quer um chá? – perguntei, querendo estender a visita.

Ela aquiesceu e se sentou no sofá, olhando para lareira.

Caímos num silêncio confortável enquanto eu atiçava o fogo. Voltando a cozinha, separei duas xícaras e abri o grande pacote de açúcar para colocar em seu chá, pois me lembrava que ela gostava dele adoçado. Sentia seus olhos queimando em minha nuca. Coloquei um pires em cima de cada xicara e resolvi fuçar minha despensa, esperando ver brotar em suas prateleiras algo pra acompanhar a bebida quente. Achei um saquinho com canela e sorri, pensando que poderia levar um bolo aromatizado para ela amanhã cedo, ela iria gostar. Mas não achei nada de sólido para beliscarmos e voltei à cozinha, peguei as xicaras e me sentei ao seu lado no grande sofá.

Meu pai me dizia que eu nunca perdia uma oportunidade, mesmo minha mãe falava isso em um tom jocoso, e resolvi aproveitar essa oportunidade que estava bem na minha frente, sem pensar.

-Ainda tem pesadelos? – disse, já sabendo a resposta

Ela somente balançou a cabeça, concordando.

-Lembro de várias noites no trem em que dormíamos juntos, para que você calasse meus pesadelos e eu calasse os seus – disse, olhando para minha xícara. Ela continuava olhando para o fogo -eu me pergunto se esse expediente ainda funcionaria.

Não sabia por que tinha falado isso, só sabia que meu coração reboava enlouquecido dentro do peito, à espera da resposta.

-Só tem um jeito de saber – ela falou para o fogo.

-Fica aqui hoje? – a esperança queimava feito fogo na base da minha coluna.

Ela me olhou com especulação e balançou novamente a cabeça.

Meu Deus, o que fui fazer?

Amor com Amor se paga - PetnissOnde histórias criam vida. Descubra agora