1.UM

12 3 11
                                    


O dia amanheceu claro. Chuvas eram comuns naquelas partes durante o mês do dragão. Abandonei a minha choupana à sombra da montanha de pedra e desci pelo caminho estreito na direção das árvores. Não era o mesmo lugar onde eu estive caçando, este ficava além de uma fenda na montanha, para o sul. Eu estava indo na direção oposta, atravessando a floresta na direção da aldeia.

Normalmente, ninguém caçaria depois da montanha. Como eu já era profana de qualquer forma, eu não me importava. Diziam que aquelas terras eram sagradas. Aparentemente, as criaturas que saíam de lá não, já que tinham me oferecido um bom dinheiro pelos ossos do arkon. Ou pretendiam que eu encontrasse um que já tivesse partido do mundo e apenas tinham esquecido de me avisar? Talvez dissessem a si mesmos que era esse o sentido de suas palavras quando me fizeram a proposta, pelo menos para viverem em paz com suas consciências. Se caísse na desgraça dos deuses, era apenas a minha responsabilidade.

Dias claros eram bons dias. Como eu estava sozinha, não poderia me dar ao luxo de ser descuidada e acabar me machucando por bobagens. Ninguém iria me socorrer. Ninguém arriscaria o pescoço e a alma para me resgatar se eu caísse em algum penhasco. Na verdade, ninguém passaria unguento nos meus arranhões ou colocaria o meu ombro de volta no lugar se eu o deslocasse. Era isso que significava ser só. Era isso que significava viver do lado de fora da segurança dos muros.

Eu já tinha vivido entre os meus. Em oposição ao povo de Sotan e suas luas, meu povo conhecia as engrenagens do mundo. Poderíamos não escutar os doze, não entendíamos muito dos números, mas nós escutávamos as coisas. Nós escutávamos da pedra o que ela tinha sido criada para ser. Moldávamos o metal com o calor de nossa própria respiração. Nossas cidades eram grandes e o meu povo... meu povo era orgulhoso e não perdoava as contravenções.

Não me restava nada do meu povo. Ainda tinha o cabelo ruivo, claro. Minha mãe dissera uma vez que antigamente diziam que isso era uma marca da nobreza. Se era verdade, sete em dez dos meus conterrâneos eram nobres. Ou, pensando melhor, isso tornava a todos nobres, porque deveria existir ao menos um ruivo em cada família. Antes de mim, meu pai tinha sido o ruivo do nosso pequeno núcleo familiar. Minha mãe tinha um lindo cabelo castanho-claro. Meu pai dizia ter se apaixonado por ela à primeira vista. Deveria ter sido por causa do cabelo.

Meus pais eram uma memória agridoce. A perda de cada um ainda recente na memória. Eu os enterrara, talvez até em mais formas do que a real. Fui eu quem cavou as sepulturas. Meu pai morreu primeiro. Minha mãe seguiu três anos depois. Foi como ver uma vela se extinguir lentamente. Toda a alegria parecia ter sido drenada de dentro dela. Em retrospectiva, talvez ela tivesse percebido o que eu já deveria saber a algum tempo: não existia uma saída.

Pensar que existia uma alternativa talvez fosse uma noção infantil. Em contraposição, aceitar a realidade seria parar e esperar pelo quê? Que o coletor viesse para me unir aos meus pais?

Apesar de tudo, eu não conseguia me levar a desistir. Era apegada demais à vida. Apegada demais às minhas memórias, talvez? A luz do pôr do sol sobre a cidade, deixando todas as construções com uma aparência rósea, enquanto meu pai me tinha nos ombros e olhávamos os navios no porto na cidade baixa. O sorriso da minha mãe, quando via pela janela meu pai voltando para casa. Memórias demais, perguntas demais. Valeria realmente a pena continuar? Fazer perguntas realmente não adiantava quando o único que iria escutá-las era um lobo tolo que estava se tornando dependente demais de uma humana... Apesar do que pudessem dizer sobre mim, eu ainda era uma humana.

Escutei um farfalhar nas folhagens próximas. Abaixei-me naquela hora, mesmo sem saber por que estava fazendo isso. Era um reflexo de proteção. Não era um movimento natural, era algo que eu tinha me ensinado com o passar do tempo. O involuntário era o movimento da minha mão para o cinto e meus dedos envolveram a empunhadura da arma. Quando me dei conta, tinha a irmã mais nova de Aerona na minha mão e tentava localizar um alvo. Ao perceber que tinha feito isso, rapidamente devolvi-a ao seu local de origem. Aquele tipo de arma, naquela região, era um tabu. Era melhor não ser pega com uma delas a menos que fosse estritamente necessário.

As Fronteiras do MundoOnde histórias criam vida. Descubra agora