1.DOIS

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Eu tinha sido tola. Esqueci-me que algumas vezes preferiam, ao invés de cuspir, dar-me safanões ou socos. Estava esquecendo disso porque fazia tempo que não acontecia, mas a velha cozinheira deveria me servir de lembrança. As pessoas mais tradicionais nunca me aceitariam ali. Todos os estrangeiros traziam desgraças.

Em um rompante de raiva, tive vontade de voltar e saltar sobre a velha. Derrubá-la-ia no chão, sentar-me-ia sobre ela e arregaçaria a minha manga, para que ela realmente soubesse o tamanho dos problemas que eu trazia.

Ao invés disso, respirei fundo e desci as escadas do porão escuro, tateando a parede. Eu sabia como o porão era, já tinha estado lá algumas vezes. Era um dos lugares favoritos de Darnell para fazer negócios. Ao menos para os negócios que não deveriam ganhar a luz do dia. Encontrei um barril de cerveja e sentei-me sobre ele. A velha não diria a Darnell que eu estava ali. Provavelmente teria trancado a porta depois de ter me deixado entrar, também.

Já tinha passado do ponto em que ser trancada no escuro no porão da taverna me incomodava. Eu não tinha ilusão de que em uma ou duas horas Darnell acabaria me encontrando. Afinal, eu estava sentada sobre um de seus barris de cerveja. Procurei relaxar então, e comi metade do pão que a matrona tinha me dado. Guardei a outra metade porque, apesar de ter confiança de que me deixariam sair em breve, eu preferia guardar um pouco de comida para emergências.

Darnell levou pouco mais de meia hora para aparecer. Quando me viu sacudindo as pernas como uma criança pequena sobre seu barril, ele quase derrubou a lamparina. Por um instante imaginei o fogo se espalhando e queimando toda a vila. Nunca chegaria a esse ponto. Uma lamparina simples, derrubada por acidente em um chão de pedra, não traria problema algum.

Mas se ela caísse sobre a cerveja... Isso seria interessante.

– Eu não tinha cabelos brancos antes de você aparecer, menina – ele resmungou, colocando a lamparina no gancho.

Darnell era grisalho nas têmporas, mas sua barba e cabelo eram castanho-escuros. Deveria ter um pouco mais de quarenta anos. As rugas ao lado de seus olhos não eram ainda fundas e sua pele não tinha muita flacidez. Era um homem inteligente, isso eu conseguia ver em seus olhos escuros, mas não era exatamente gentil. Ao menos não era gentil comigo, apenas com seus clientes.

– Sua cozinheira me trancou aqui – saltei de cima do meu barril. – Estava te esperando.

– Você conseguiu, então.

A expressão de satisfação no rosto dele me fez perceber que minhas conclusões estavam corretas. Coloquei a mão dentro da bolsa e tirei dois pacotes. Joguei-os a ele. Seus reflexos eram bons, ele não derrubou nenhum.

Soltou as amarras do primeiro. Era a pele do arkon. Eu tinha achado macia, apesar de não ser grande o bastante para fazer um casaco.

– O que é isso? – ele levantou a sobrancelha.

– Um presente, senhor – sorri, inclinando a cabeça.

Darnell ignorou a insolência no meu tom.

– Quero saber quanto vai me custar esse presente...

– Não tanto quanto o preço por sua criada me trancar em um porão, com certeza.

– Muito bem – ele concordou, talvez me desse uma moeda pela pele, ou era o que eu esperava receber por ela.

Colocou o pacote com a pele sobre um barril e soltou as amarras do segundo pacote. Os ossos do arkon brilhavam. Eu sabia o porquê.

Tinha percebido isso quando mexi nas cinzas do fogo naquela manhã. Os roedores se alimentavam das raízes e tubérculos da terra sagrada, mas o fato de ser sagrada para aquele povo não era o que tornava os ossos preciosos. O que acontecia era que os minerais presentes em sua fonte de alimentação eram fixados pelos arkon em seus esqueletos, transformando seus ossos em um metal preciso e raro, chamado de haima.

As Fronteiras do MundoOnde histórias criam vida. Descubra agora