2. UM

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Deixar alguém andar atrás de mim era algo que eu tinha aprendido a nunca fazer. Incomodava-me profundamente. O silêncio, esse não me incomodava, nós éramos velhos amigos. Aquele homem, porém, não era um amigo do silêncio. Quando tentou conversar comigo sem que eu lhe desse uma resposta, começou a cantarolar. Senti-me estranhamente grata por pelo menos saber onde ele estava o tempo todo que caminhávamos.

Enquanto subíamos a montanha, pensei se não seria mais seguro providenciar para que ele caísse da trilha. Ou poderia simplesmente pegar a irmãzinha de Aerona e atirar nele. Alguma coisa, porém, me dizia que o tiro não funcionaria. Eu não tinha a convicção para matar aquele homem, não sem saber o que ele estava fazendo ali e o que queria.

Quando nos aproximamos da cabana, percebi que ele ficou para trás. Virei-me e ele estava diante dos túmulos dos meus pais. Não era nada grandioso, apenas duas pedras marcando onde eu tinha colocado seus corpos para descansarem para sempre.

Sem dizer uma palavra, ele voltou a caminhar na minha direção.

– Aqui é onde você se esconde – ele disse e senti um pouco de ironia na sua voz.

Imaginei quanto tempo ele estaria me procurando e como ele sabia que era eu quem ele procurava. Desisti de pensar e voltei a caminhar na direção da cabana.

– Você não fala muito, não é? – perguntou, mas não respondi, o que pareceu confirmar a pergunta dele.

Entramos na cabana. Os olhos dele correram gananciosos por sobre os meus pequenos contrabandos e contravenções. Soltou um assovio baixo, olhando os relógios sobre uma prateleira. Parou diante da mesa e começou a mexer nas peças do meu cão constructo com a ponta do dedo. Então, voltou sua atenção para Aerona, que descansava sobre a cama.

– Esta é uma beleza – ele disse, indicando minha arma. – Gostaria de tocá-la, mas ela não parece que iria gostar se eu fizesse isso. Ela tem nome?

Assenti, sem vontade de lhe dizer mais nada.

– Eu deveria saber. Esse tipo de arma temperamental sempre tem um nome – sorriu para mim. – Qual o nome dela?

– Aerona.

– Aquela que você tinha na cidade? Ela tem um nome também?

– Irmãzinha – levantei os ombros. – É a irmã mais nova.

Parei por um momento e considerei a natureza daquela conversa. Que eu pudesse me referir a minha arma como um ser vivo, era justificável porque eu a construí e eu precisava de alguém para conversar. Aquele homem tratá-la assim, só poderia significar que era louco.

Sentou-se em uma cadeira e apoiou um cotovelo sobre a mesa. Pareceu pensativo por um instante. Apenas quando falou foi que percebi que estava tentando escolher as palavras:

– Os túmulos lá fora?

Ele era um intrometido.

– Meus pais – respondi.

– Você os matou?

Mantive o olhar dele, pelo menos ele era direto. Neguei com a cabeça.

– E eles tentaram te matar?

Talvez eu devesse dar um crédito a ele por fazer as perguntas certas. Neguei com a cabeça mais uma vez.

– Eles vieram com você até aqui – ele fez uma pausa, pensativo. – Por quê?

Levantei os ombros. Não poderia saber qual era o propósito dos meus pais. Nunca tinha perguntado e não estavam mais em condições de me responder. A menos que um necromante resolvesse erguê-los e fazer justamente esta pergunta, a resposta estaria perdida para sempre.

– Desde quando você a tem? – gesticulou, indicando o meu braço.

– Dez anos. Tinha nove quando apareceu.

– Dez anos – ele repetiu pensativo. – Isso é uma vida. Nunca vi ninguém durar tanto tempo.

– Você conheceu muitos?

– É difícil encontrar alguém como nós. Você é apenas a terceira que eu estou conversando. Um morreu dias depois pela própria mão e a outra... era uma menina de sete anos. Ela foi descoberta – ele pareceu pensativo um momento, seus olhos estavam distantes e sem brilho. Imaginei o que ele teria testemunhado, mas independente do que tinha visto ou não, uma morte é sempre uma morte. Resolvi chamar a atenção dele para outra direção.

– Há quanto tempo você tem? – perguntei.

– Desde os dezoito. Acho que fui esperto em esconder. Já faz cinco anos e minha família nunca soube sobre ela.

– Mostre-me.

Levantou-se e me deu as costas. Após tirar o casaco, levantou a camisa. O padrão ininteligível das linhas se ramificava e ocupava mais da metade da pele de suas costas. Era como uma pintura em tinta negra, ao mesmo tempo bela e aterrorizante.

– Ela tem aumentado – disse e deixou a camisa cair de volta em seu lugar, antes de olhar para mim. – A sua se espalhou?

– Não.

Aproximei-me do fogão e coloquei água para esquentar em um pote. Precisava de alguma coisa para ocupar as minhas mãos e, talvez, mexer com metal não fosse uma boa ideia. Chá. Pessoas precisam de chá. Minha mãe gostava de chá, dizia que era cortesia oferecer isso a uma visita. Talvez ele não fosse bem-vindo, mas continuava sendo uma visita de qualquer forma. Ou ele tinha se tornado bem-vindo no momento em que decidi não atirar nele?

– O fogo? Um elemental? – perguntou, indicando com a cabeça o fogão, antes de se sentar novamente.

– O que você quer? – perguntei, virando-me para ele impaciente.

Não queria mais perguntas, ou conversas sobre amenidades e coisas corriqueiras. Nós não éramos amigos, não éramos conhecidos. Ele estava interrompendo a minha paz para me fazer perguntas que eu não queria responder. Talvez eu devesse mesmo atirar nele. Talvez eu devesse fazer com que Fenir o mordesse, mesmo sabendo que o lobo não aceitava comandos. Na maior parte do tempo, eu sequer sabia onde ele estava.

– O que eu quero? Não morrer? – ele apoiou o cotovelo sobre a mesa e o queixo sobre a mão. – Viver para ver o meu vigésimo quinto aniversário? Ter essa coisa tirada das minhas costas para que eu pudesse viver uma vida tacanha e enfadonha? Acho que quero muitas coisas. Se a minha marca tivesse aparecido no braço, eu o teria decepado.

Tirei o meu casaco e comecei a mexer nas brasas do fogão. O elemental se irritou com a minha interferência, conseguia sentir isso na forma com que as chamas dançaram, como se tentassem tocar a minha pele. Joguei o atiçador de lado e abri minha camisa, removendo-a de um braço e deixando minhas roupas debaixo à mostra.

Examinei todo o desenho do meu antebraço exposto, sem me preocupar em estar fazendo isso na frente de outra pessoa. Se eu visse a terra revirada no túmulo de minha mãe no dia seguinte, saberia que ela teria tentado me censurar por tomar esse tipo de liberdade na frente de um homem. Exceto, que ele não era um homem. Era um marcado. Ele não era um homem e eu também não era uma mulher. Éramos apenas amaldiçoados.

As Fronteiras do MundoOnde histórias criam vida. Descubra agora