Livro Dois Os Segredos de Kanuri: As Escolhas de um Pajé.

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                                                                                    1 — A Lenda

Muitos anos atrás, o espírito do mal Tau estava entediado e observava o plano físico em busca de uma distração, foi quando se apaixonou por uma princesa da tribo Guarani, tamanha era a sua beleza, seu caráter e as suas demais qualidades que ela era indescritível, a doce Kenara, filha de Mangaratu, um dos primeiros líderes da tribo. Por sete dias Tau tomou a forma humana e desceu a terra para habitar com Kenara, a fim de se divertir e lhe cortejar, no entanto, Angatupyry, espírito do bem e contraparte de Tau, viu isso e decidiu ir atrás dele para o trazer de volta ao plano astral e impedir Tau de iludir a moça, além de procriar e disseminar a sua semente maléfica pelo precioso mundo criado por Tupã.

Porém isso não deu certo, depois de dias e mais dias de uma luta insana, Tau conseguiu vencer Angatupyry, que no processo acabou por se apaixonar pela jovem e revelar a ela toda a verdade, para ela o escolher e menosprezar Tau, o qual se apossou de Kenara à força, já que a mesma quis fugir mediante a descoberta de quem realmente era o seu pretendente.

O espírito do mal então a subjuga e lhe engravida sete vezes, a fazendo mãe de sete filhos, os quais Angatupyry transformou em monstros e os amaldiçoou ainda nos seus nascimentos. Os tornando seres horrendos que tinham poderes comparáveis aos dos deuses, alguns até mesmo se tornaram deuses com o tempo, contudo com desgosto dos próprios filhos, Kenara decidiu viver de volta a sua aldeia, sendo conhecida agora por novos adjetivos, a princesa deixou de ser indescritível para ser chamada de a desonrada, a humilhada, a mãe dos monstros, aquela que trouxe desgraça para a aldeia e fez o bem e o mal lutarem entre si.

Essa tinha sido a história contada a Urut pelo seu avô, a qual era passada de geração em geração, uma das típicas lendas Tupi, que eram repletas de fantasia, amor e poder, uma combinação extremamente poderosa, porém, absurdamente difícil de ser manejada. Essa mesma lenda repercutiu por várias aldeias, tendo diferentes versões da mesma.

Com a respiração pesada Urut acorda, estivera sonhando com a lenda do nascimento de Luison, a qual mostrava um pouco do por que ele era tão fanático pela tribo Guarani, porém, sonhar com a mesma coisa por dias nunca era um bom sinal. Ter o sequestro como última visão da sua filha, tinha causado um grande impacto negativo, o pobre coitado não conseguiu abraçá-la, dizer que amava, ou ao menos a ajudar a superar a morte de Kenel, que ela havia causado.

Urut então decide se levantar e lavar o rosto, particularmente, tinha sido uma noite e tanto, e uma hora ele teria que sair da cabana. Foi quando ouviu uma voz em sua mente.

— Urut tem um minuto?

Há muito tempo que Curupira não falava diretamente com ele, desde a batalha, para ser exato, então Urut decidiu que estava na hora de conversarem novamente.

— Tenho velho amigo, o que lhe preocupa?

— Você, isso que me preocupa, eu sumi para que o veneno de Luison não lhe matasse, selei os meus poderes e a minha essência, para assim absorver a toxina e o privar dela.

— Muito obrigado, achei que estivesse chateado comigo ou algo assim, que bom que ainda posso contar com você, vou precisar da sua ajuda para ir atrás da minha filha.

— Primeiro, acho que você deveria ir lá fora, resolver os seus assuntos com a sua aldeia, cuidar de Caipora e depois sim, conseguirá ir.

Como um flashback, as imagens vieram em sua mente, tudo foi muito rápido, assim que Luison some com Kanuri, Urut se vê sentado sobre suas pernas com Caipora desmaiada em seu colo e Kenel morto diante de si. Alguma coisa estava errada, Curupira tinha sumido, gradualmente ele estava voltando à sua forma normal, porém, sem entender o porquê. Em um último esforço, Urut cria um vértice abaixo deles, levando Caipora e Kenel para aldeia.

— Alguém! Preciso de ajuda!

E com essas palavras, Urut cai no chão desmaiado. Isso foi o que tinha acontecido depois da batalha, agora ali estava o pajé olhando Caipora deitada na cama ao lado, ainda desmaiada. No plano físico a deusa era surpreendentemente linda, mas no plano astral, não tinha nem comparação. Mesmo naquele estado debilitado, flores cresciam ao seu redor, a pele avermelhada da deusa era repleta de marcas negras semelhantes às de Kanuri, as quais pareciam raízes no chão e pulsavam com seus batimentos.

— Como ela ainda não acordou?

— Ela te curou a viagem inteira, lutou duas vezes consecutivas contra Luison, atravessou uma dimensão, fez uma possessão e foi rejeitada, o gasto de energia foi descomunal, ela precisa se recuperar.

— Ela realmente sempre foi do tipo que se sacrifica pelos outros, espero que não tenha sido em vão.

— Obrigado.

Estendo a mão e toco em sua cabeça, descendo até sua bochecha, antes de me preparar para beijar sua testa e acariciar os seus cabelos. Me levanto e busco descobrir o que estava acontecendo, ouvi muito barulho ao meu redor, o que me fez sair da cabana, foi quando vi uma multidão ali, parecia que todos os moradores estavam presentes. O dia estava horrível, o céu estava nublado, uma leve neblina seguida de uma pequena chuva ocupava o lugar, estava frio, nunca tinha visto aquela aldeia tão "fantasmagórica" como naquele dia, parecia que não só as pessoas, mas todos os animais, flores, árvores, toda a Amazônia estava sentida com a morte de Kenel. Poucos metros adiante uma fogueira com uma foto do menino mostrava o que tinha acontecido, seu corpo havia sido cremado. Certamente, ele desejaria que suas cinzas fossem levadas e enterradas junto de Penuço.

— Gente, o Urut acordou!

Alguém disse, não sabia se era algo bom ou ruim, todos me encararam de uma vez, não disse nada, apenas andei em direção às chamas, imagens passavam pela minha mente. Conseguia ver todos os momentos que passei ao lado de Kenel, quando o treinei, quando ele e Kanuri aprontavam e eu tinha que dar uma bronca neles, quando caçávamos juntos, quando me despedi dele, e mais recentemente quando lutei contra Luison ao seu lado, até mesmo quando ele me chamou de sogro, ele seria alguém em quem eu confiaria à mão de Kanuri.

As pessoas ao meu lado não paravam de murmurar, e eu as ignorava, pois estava perdido em meus pensamentos enquanto seguia. Ao chegar diante do fogo, o deslumbrei, as madeiras ainda crepitavam, as brasas abaixo delas prendiam minha atenção, simplesmente, me jogo de joelhos no chão chorando.

— Me desculpe, não pude te salvar, mas isso não ficará assim, juro diante de suas cinzas, do seu povo, dos deuses, eu vou lhe vingar.

Ergo as mãos para pegar um pedaço de madeira ainda em chamas e o aperto, sentia a pele queimar, uma dor intensa na minha mão, entretanto, ainda segurava aquele fragmento. Vejo o sobrenatural agir, as labaredas dali circulavam meu punho, fazendo a cicatriz parecer uma fina pulseira, estava selado, os deuses e espíritos ancestrais tinham ouvido o meu juramento.

Devagar me levanto, e esmago a madeira, que se torna cinzas, abro as mãos e as deixo cair sobre o solo. Meus olhos se tornaram chamas, assim como meus cabelos e com a pele verde me viro para as pessoas.

— Eu vou fazer justiça! Vou parar Luison.


Os segredos de Kanuri, a guerreira Tupi.Onde histórias criam vida. Descubra agora