20 - Boitatá

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Um corredor cinza com algumas lâmpadas era o caminho pela longa caverna, onde ficava o esconderijo de Luison, mesmo nos tempos mais modernos possíveis, ele se negava a abandonar seus velhos costumes, era possível ouvir as goteiras espalhadas pelo lugar. O cheiro de pedra úmida era pontual, que se espalhava pelo ar frio e mórbido do lugar, a caverna deveria ser profunda, pelo menos o suficiente para o ar não circular como deveria. O som dos passos ecoava pelo lugar, a figura coberta por uma túnica negra seguia seu caminho, indo até a cela, onde Caipora estava com pouca comida e água, parando diante do aposento e fixando o seu olhar na deusa.

— Caipora, vim trazer sua comida e água.

Foi então que no fundo da cela era possível ver uma figura humanoide dentro do lugar mal iluminado, era a deusa em posição fetal, ela levanta o olhar. O que era uma cena de partir o coração, já que era possível ver um semblante abatido, olhos pesados e cansados, pele surrada, marcas pelo corpo, que um dia foi dono de uma beleza impecável, mas hoje estava atormentado demais pelo tempo e pelas "conversas" com Luison.

— Boitatá, há quanto tempo, é tão bom ouvir a sua voz, pelo menos sei que não vou acabar esse dia machucada.

— Você está terrível, a tortura constante está minando todo o seu charme, nem ao menos consigo ver seu sorriso. Quis vir aqui após a última batalha, tenho boas notícias.

— Desculpe, mal tenho forças para me manter de pé, e bem, não tenho mais motivos para sorrir. Porém, não deixe isso lhe abalar, me fale, conte-me essa boa notícia.

E aí, o rapaz retira a capa, a pendurando ao lado da cela ao entrar, exibia o corpo que escondia. Era um rapaz bem alto, facilmente chegava aos dois metros de altura, um corpo musculoso, cabelos em um corte militar, seus olhos negros pareciam pesados e cansados de lutar, mas naquele momento mais do nunca, havia um brilho de esperança neles e várias cicatrizes espalhadas pelo corpo, o que deixava claro o título de general de Luison.

— A menina, a sua protegida enfrentou o Boto em um combate direto e o venceu, tanto ele quanto Luison estão extremamente irritados, não sabem o que fazer, a cada dia que passa ela se fortalece mais.

Ouvir aquilo fez Caipora abrir um pequeno sorriso, era visível a dor em seu corpo, porém foi uma notícia e tanto.

— Pequena... bem, tomara que consiga chegar aqui, mas eu não entendo, porque você está aqui, e não na frente da batalha e outra coisa, porque está aqui me contando essas coisas, isso seria traição.

— Não sei, nem mesmo eu sei, só queria te ver sorrindo, pelo menos uma vez em muito tempo.

Ambos falavam por sussurros, quando passos pelo corredor chamam a sua atenção, Boitatá coloca sua capa novamente e então sai da cela, a trancando em seguida, antes de olhar para Caipora uma última vez e cumprimentar os guardas ali, enfim, segue em direção à entrada da caverna.

— Já alimentei a prisioneira, não precisam se preocupar com isso.

Na outra câmara, a principal, era possível ver um grande trono de pedra, e lá sentado estava uma figura curvada com a cabeça sobre seus joelhos e com as mãos em torno do seu rosto. Seus cabelos vazavam por seus dedos e seguiam até o meio de sua testa, os quais eram de um preto tão lustroso, que refletiam levemente a luz do lugar, em contrapartida um homem sobre um banco estava diante de um pequeno bar com um copo de uísque na mão olhando para ele pensativo, antes de se virar para a entrada.

— Boitatá, ainda está por aqui? Espero que tenha trazido alguma informação útil pelo menos.

— Garanto que sou mais útil que você, afinal, não fui eu que lutei e perdi para uma garotinha, que mal sabe usar seus poderes, não é mesmo Boto?

A tensão percorre o lugar, tão densa na troca de olhar de ambos que quase era palpável. Nesse instante, Boto arremessa o copo em direção ao Boitatá, esse levanta-se um pouco depois e sacando sua adaga banhada em uma fina camada de água, avança atrás do copo. Boitatá simplesmente move a mão de cima para baixo, e uma aura alaranjada se projeta da ponta dos seus dedos como a lâmina de um bisturi, cortando o copo e seu conteúdo ao meio, fazendo o líquido pegar fogo no ar, enquanto se ouvia o choque das suas armas de longe, porém elas não haviam se encontrado, ambas haviam se chocado contra um bastão envolto em uma camada de vento, usado por uma quarta figura, e uma risada preenche o lugar quando ambos veem um adolescente de pele um pouco mais clara, seus cabelos eram tão escuros quanto os de Luison, seus olhos eram de um cinza quase branco, seu corpo parecia o de um doente, de tão magro, mas a sua presença era a de um furacão. Este chega falando em um tom de extremo deboche.

— As duas crianças já acabaram ou cheguei cedo demais?

Um estrondo percorre o lugar, fazendo com que os três vejam o forte golpe de Luison no braço do seu trono.

— Meus três servos leais, controladores das três forças mais destrutivas e temidas da natureza, todos têm grandes feitos na história, mas juntos parecem um trio de adolescentes histéricos. Se não bastasse essa derrota vergonhosa e essa pirralha me enchendo a cabeça, ainda tenho que aturar isso?

Boitatá foi o primeiro a recuar seu braço, e então com um passo à frente põe um dos joelhos no chão.

— Meu senhor, tenho novidades, a garota saiu da aldeia e vem ao nosso encontro, o plano de deixar Caipora falar com ela deu certo.

— Ótimo, obrigado, como sempre nunca me desaponta. Saci! Quero que vá até ela, é o mais rápido aqui, tem dois dias para trazer a cabeça dela para mim.

Tão rápido quanto chegou, uma risada travessa percorre o lugar, e então o menino magricelo some dali, enquanto Boitatá dá de ombros e com uma reverência sai da caverna deixando apenas o Boto e Luison ali trocando olhares.

— Agora, é só uma questão de tempo.

— Meu senhor, se me permite...

— Calado, Boto! Você teve a sua chance e a jogou fora.


Os segredos de Kanuri, a guerreira Tupi.Onde histórias criam vida. Descubra agora