O olhar de Boitatá me assustava. Era a primeira vez que o via com tamanha preocupação e peso nele. Algo grande estava vindo e se isso o assustava, certamente, me assustava também. Por outro lado, Kenel estava bem melhor que antes, acho que o encontro com Guan teve um lado bom, espero pelo menos.
— Kenel, você está pronto para seguir caminho? Sinto que uma luta se aproxima e não precisamos de um peso extra agora.
O tom arrogante e seco do moreno junto do calor que emanava, fazia a frase ser muito mais ríspida e ofensiva do que sua expressão aparentava. Isso fez Kenel tirar suas bandagens e se levantar.
— Estou, mas para seguir preciso do seu toque, bem aqui, a ferida não irá se fechar se não for cauterizada.
Dito isso, Boitatá deu um passo rápido ao seu encontro, e eu vi os músculos do menino se enrijecerem, até mesmo eu me enrijeci e senti meus cabelos se arrepiarem. O cheiro de carne queimada subia pelo ar, enquanto o chiado causado no processo deixava bem clara a quantidade de dor que Kenel deveria estar sentindo. O suor escorria da sua testa para sua nuca como as águas de um rio, o que parecia durar horas levou apenas alguns segundos, e assim que Boitatá recolheu sua mão. Kenel desmaiou de dor, e eu? Logicamente corri para lhe segurar e não deixar que caísse e batesse de cabeça no chão.
(É sobre isso, a guerreira protegendo o seu amado, e tá tudo bem.)
— Ken, Ken, está tudo bem?
— Fique tranquila, ele está bem, mas a dor de uma cauterização é muito grande, provavelmente, acordará em breve.
E assim aconteceu, não levou muito tempo até que Ken acordasse em meus braços e me olhasse profundamente.
— Você é um anjo? Eu morri e estou no céu?
Fiquei vermelha? Claro. Respondi ele? Não. Apenas ri e o joguei no chão, ao me levantar, tentando parecer o mais irritada possível.
— Para de graça, não me assuste assim.
— Aí, já te falaram que você fica linda quando está brava? E além do mais, agora eu tenho uma cicatriz maneira no abdômen.
Com a mão na cabeça, Kenel se levanta devagar e vaiem direção a sua mochila se preparando para continuar a jornada acertando a sua espada nas suas costas.
— Vamos! Temos que andar antes que fique escuro de vez, e agora estou ansioso para fatiar uns monstros.
Após seu comentário, minha ficha caiu, o céu estava rosa-alaranjado, deveria ser umas cinco horas da tarde, mais um dia tinha voado sem que percebesse. Em breve sentiríamos o vento refrescante da noite, e estaria escuro demais para seguirmos a caminhada.
— Que bom que está animado Kenel, já que nosso próximo desafio não é ninguém menos que um dos irmãos do próprio Luison, nenhum deles tem coragem para enfrentar o irmão mais velho, logo ele os usa como capangas, e provavelmente eles vão se colocar diante de Luison como um "escudo", então teremos que passar por cada um deles, para alcançar nosso objetivo, mas calma, fique tranquilo, só tem mais quatro depois de Moñai para matarmos, já que um se mantém neutro nessa história.
Ouvir Boitatá falar isso me fez sentir calafrios, em breve estaríamos enfrentando seis dos sete monstros lendários, um dos irmãos daquele que está ansioso para me matar.
— Esse cara sabe mesmo como animar as pessoas. Bem, obrigado Kin por tomar conta das coisas para mim. Você tem notícias do Penuço?
Escuto o assobio de Kenel e em seguida vejo o falcão descer até seu dono com uma cara nada amigável e o que um dia foi um peixe em seu bico.
(Tipo: Não posso nem comer em paz nesse lugar!)
— Oi amigão, desculpa atrapalhar o lanche, só queria ver se estava bem, vá, mas não fique longe.
E lá se vai a ave novamente, como se não tivesse aparecido ali. Seguindo seu exemplo, também continuamos nosso caminho, agora que escurecia tínhamos a companhia mais intensa dos pernilongos durante o trajeto, por isso e outros motivos, paramos para acampar ali mesmo. O nascer do sol, não tenho nem palavras para descrever tamanho evento natural, tanta beleza e majestade, pena que não tínhamos tempo para admirar ele. Pouco tempo se passou desde o seu raiar, e já estávamos na nossa trilha pacificamente, até Boitatá parar bruscamente diante do grupo.
— A partir daqui, estamos no território de Moñai, fiquem atentos e não se afastem um do outro.
Terminando a fala, seus punhos se inflamaram, e sabíamos que a situação ia se complicar. Kenel saca sua lâmina a mantendo rente ao antebraço, segurando-a na posição inversa, com a folha para cima, que seria mais apropriado para defesa do que para ataque, pego meu cajado em minhas costas e sigo os acompanhando. O lugar era uma campina causada pelo desmatamento, onde há alguns anos havia uma das partes mais lindas da Amazônia, agora parecia um cemitério de tocos de árvores e de matos baixos. Do outro lado do campo surgiu uma figura esguia, parecia apenas um seringueiro a princípio, sua pele era avermelhada castigada pelo trabalho no sol, suas roupas beges e repletas de rasgos, estavam sujas com manchas de látex, na sua cabeça havia uma blusa amarrada, usada como sobreiro. Pelos seus braços era possível ver marcas de cortes abaixo dos pelos, seus olhos eram de um preto tão escuro que passava o tom do carvão, deveria ter seus cinquenta anos e estar parando de trabalhar.
— Não abaixem a guarda, diante de vocês está o grande Moñai, não o subestimem pela sua aparência.
— Ora, não assuste as crianças Boitatá, não vejo a hora de falar para o meu irmão que um de seus lacaios está aliado aos inimigos. Prometo não machucar... Muito vocês antes de matá-los.
Foi apenas durante um milésimo de segundo, mas eu juro que o vi abrir a boca e usar sua língua bifurcada para farejar o ar como as cobras fazem. Isso fez com que me aproximasse de Boitatá, tremendo um pouco e sussurrando.
— Qual seria a verdadeira forma dele? Só por questão de curiosidade.
— Uma grande serpente marrom-avermelhada, senhor dos campos e ambientes abertos, por quê?
— Nada, apenas curiosidade.
Merda, não sabia o que fazer agora.
(Mentira, odeio répteis, e sabia sim, a adolescente histérica dentro de mim estava entre gritar e correr de medo ou atacar primeiro e tomar cuidado depois.)
Giro meu cajado e então dou um passo à frente.
— Sou eu quem você quer, não eles, venha me enfrentar sua minhoca superdesenvolvida.
Uma risada fria sai da garganta daquele homem.
(Padrão dos vilões, lá vem a frase de efeito.)
— Para que enfrentar e derrotar uma, se posso matar os três e levar ao meu mestre? E sim, é um saco obedecer fielmente a meu irmãozinho e o chamar de mestre, masss, ele é o mais poderoso dos sete, logo, não sou burro de comprar uma briga perdida.
(Sim, ele falou esse "masss..." como uma cobra, chegou arrepiar!)
E assim, Moñai avança em minha direção correndo em zigue-zague. Armas? Não vi nenhuma, estava muito preocupada observando sua pele se tornar cada vez mais escamosa e suas unhas se tornarem pontiagudas como navalhas.
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Os segredos de Kanuri, a guerreira Tupi.
AdventureNos primórdios da criação da tribo Guarani, Kerana, a bela filha de Marangatu, foi capturada pela personificação do espírito mau conhecido como Tau. Juntos eles tiveram sete filhos, que foram amaldiçoados pela grande deusa Arasy. Um dos seus filhos...