Caminhada

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As emoções que sentia não estavam assim, tão confusas e desequilibradas, desde a morte de Guizhong, porém dessa vez era diferente e bem menos desesperador.

Morax nunca tinha sido conhecido por ser uma pessoa emotiva ou ansiosa, na verdade, muito pelo contrário, ele era sempre um sinônimo de paz interior, autocentrismo e autoconfiança. Sempre tinha conquistado tudo por sua própria força e vontade, tendo se tornado o mais poderoso mesmo entre os arcontes, construído um país equilibrado de pessoas guerreiras e obstinadas, se tornando exemplo para toda a nação por sua devoção ao trabalho e, acima de tudo, a si mesmo. E, no entanto, agora tinha tomado a decisão mais importante dos últimos séculos ao forjar sua própria morte para assim se aposentar, enfim.

Seguiria os passos de Venti, viveria entre os mortais, experimentaria seus anseios e suas rotinas, aproveitaria, finalmente, a família à qual tinha iniciado tantos e tantos anos atrás, antes mesmo de Khaenri'ah e aquela bagunça toda. Tudo bem que o início dessa família tinha sido um acidente, mas ele não era o tipo de pessoa que abandonaria uma mulher grávida ao relento, e, mesmo que discretamente, tinha cuidado de todas as gerações daquela família até o presente momento. Agora restava apenas um membro de sua descendência e o desejo de Morax era cuidar dela como pudesse; se ela permitisse, ele participaria ativamente de sua vida, estaria presente para que ela não ficasse sozinha jamais. E sua preocupação com a menina Hu Tao foi um dos maiores motivos para que ele aceitasse que sim, tinha chegado a hora de se aposentar.

E assim ele iniciou uma discreta vida ao lado daquela que passaria a chamar de sua filha - embora ela estivesse vários galhos abaixo disso na árvore genealógica -, aprendendo com ela a trabalhar na funerária da família, auxiliando-a em seu cotidiano e formando com ela uma amizade e um amor fraterno como ele jamais tinha experienciado antes.

Mas, embora ele jamais transpassasse isso para o mundo por meio de seus atos ou expressões, Zhongli - como tinha passado a se chamar em sua forma humana - estava em pânico por dentro. Era uma mudança muito grande para sua rotina, seu estilo de vida, e muitas vezes ele sentia como se precisasse voltar e ajudar seu povo, embora no fundo soubesse que eles estavam se virando muito bem sem ele. A aflição era tão grande que ele constantemente sentia a necessidade de sair para longas caminhadas para espairecer. E foi numa dessas caminhadas que ele acabou se deparando com uma situação bastante complicada.

Zhongli não era o tipo de pessoa ingrata incapaz de compreender a importância de cada ser humano dentro de uma esfera social ou sua participação nos acontecimentos que levaram à concretização de um objetivo. Então não pôde evitar se compadecer ao ver um corpo moribundo estirado próximo à estrada que dava acesso da cidade às minas. Aquele corpo ferido, abandonado sobre uma poça de seu próprio sangue, se agarrava firmemente a uma visão que repousava sob sua mão direita, a marca dos dedos no chão de terra deixava claro que ele tinha tentado agarrá-la, pois ela provavelmente tinha sido arrancada de si em algum momento. Uma ilusão electro com a insígnia dos fatui estava caída perto dali, mas longe o suficiente para que as mãos dele não pudessem alcançá-la por mais que aparentemente ele estivesse tentando fazer isso na hora que desfaleceu. Suas roupas estrangeiras e seus cabelos ruivos não enganavam o ex-arconte: aquele era Childe, o décimo primeiro mensageiro fatui que tinha sido usado como bode expiatório na tramóia de sua aposentadoria. Provavelmente tinha sido reconhecido por aventureiros de Liyue daquele lado e talvez tivesse perdido a batalha por conta dos números. A terra estava úmida, provavelmente por conta de ele ter usado sua visão hydro, e isso deixava visíveis as tantas pegadas no solo, bastante remexido. Alguém tinha conseguido arrancar-lhe a visão e a ilusão no tumulto, suas armas também tinham sido tiradas de si e ele acabou sendo linchado antes de conseguir chamar por alguma ajuda dos fatui. Se ao menos as pessoas pudessem saber que ele era inocente naquele esquema todo...

O ex-arconte se aproximou e agachou no chão próximo ao corpo desfalecido e fechou-lhe as pálpebras cuidadosamente, depois tentou abrir sua mão, e foi quando percebeu que sua visão hydro ainda brilhava: ele estava vivo! Ouviu pelo eco dos minerais no solo que pessoas se aproximavam, muitas delas, provavelmente após linchá-lo os aventureiros tinham ido chamar os Millelith para recolherem o corpo ou prendê-lo, e agora estavam voltando. Zhongli não pensou duas vezes, agarrou o homem da forma mais cuidadosa que pôde, fazendo questão de pegar sua visão e ilusão também, e fugiu com ele dali o mais rápido que pôde. Carregou o homem pela trilha até um rio, onde despistaria os respingos de sangue no chão, e então abriu o portal para seu paraíso adepti.

O imponente palácio de Morax se escondia entre as montanhas naquele pedaço de mundo mágico além do alcance da mortalidade, além dos olhos mortais. Se Childe estivese consciente, teria ficado impressionado com a magnífica paisagem além do tempo e do espaço, com a grama verdejante e as árvores imponentes e majestosas, os picos altíssimos das montanhas cobertos de neve branca, a vastidão imensa daquela área que podia ser acessada apenas por Morax e por quem ele permitisse que adentrasse sua morada; os lagos e rios cristalinos, as fontes termais que deixavam a paisagem enevoada próximo à área construída do palácio; no entanto ele estava preso no limiar entre a vida e a morte e seus sentidos não funcionavam bem àquela altura, sua visão estava completamente fora de questão enquanto seu corpo batalhava para se manter vivo, funcionando. Morax se perguntava o que tinha acontecido para que Childe tivesse perdido a batalha para meros aventureiros ou se havia algo mais naquela história estranha, e ficava ansioso para que ele recobrasse a consciência e pudessem conversar. E essa curiosidade, além da compaixão pela pobre vida curta e frágil da criatura, foi o motor para que ele cuidasse do homem moribundo, o lavasse e tratasse suas feridas nas águas termais terapêuticas de seu recanto místico.

Quando os olhos azuis como os lagos congelados de Snezhnaya de Childe se abriram, ele estava no quarto mais bonito ao qual já havia adentrado. Deitado ao centro de uma cama confortável, as paredes de madeira ornamentadas com pinturas em técnicas tradicionais de Liyue pareciam contar uma história, mas sua mente ainda confusa e divagante não conseguia assimilar bem as informações para identificar quais histórias poderiam ser estas. Não havia itens eletrônicos ao alcance de sua vista, mas os sons reconfortantes da natureza do lado de fora das grandes janelas pareciam ser o suficiente para acalentar seu espírito; o chilrear dos pássaros, o som da água corrente, o vento assobiando entre as folhas das árvores. Ajax sentia um frio sobrenatural correr por seus ossos e gelar sua espinha. Os dedos das mãos e dos pés pareciam gelados e duros como se ele tivesse acabado de sair de dentro de um lago congelado. Ele tentou chamar por alguém, mas sua voz saiu mais como um gemido do que um pedido por ajuda. E mesmo assim, a porta do quarto se abriu e Zhongli entrou por ela com uma bacia de água quente e uma porção de toalhas.

Ajax ficou feliz em ver algum rosto conhecido, um tanto quanto mais relaxado por ser alguém que não o queria morto, alguém que sabia que ele não era o assassino de Rex Lapis. Zhongli se aproximou e colocou a bacia de água quente sobre o móvel ao lado da cama, aquecendo uma toalha com o vapor e colocando a mesma sob o cobertor cobrindo os pés do pálido ruivo que estava deitado na cama. Aqueceu outra toalha e usou a mesma para aquecer-lhe as mãos da mesma forma.

-Obrigado, Zhongli. Acredito que dessa vez você salvou minha vida. -Sua voz soou fraca e baixa, o ex-arconte se compadeceu ainda mais da situação daquela pobre vida.

-Não se esforce muito. Eu vou cuidar de você aqui até que melhore. Você perdeu muito sangue, estava quase morto quando eu te encontrei. Depois que estiver bem, se não for pedir muito, em troca desses cuidados, gostaria que você me contasse como isso tudo foi acontecer logo com você. Você é um guerreiro de primeira, eu me recuso a acreditar que tenha levado uma surra de graça pra alguns cidadãos quaisquer. -Zhongli deu uma risadinha e trocou a toalha que estava sobre a testa do fatui por uma quentinha, aproveitando para verificar a temperatura dele.

-Ha... Eu jamais... -A voz desapareceu num sopro no que o ruivo perdeu novamente a consciência.

Serenitea PotOnde histórias criam vida. Descubra agora