All The Things She Said

72 4 0
                                    

Eu lembro do dia em que perdi meu pai. Minha mãe acha que não, que eu era nova demais, mas eu me lembro. Lembro que fiquei na casa de uma das amigas dela por algumas horas, de como ela me contou, das palavras doces que usou, da expressão em seu rosto, tentando ser forte por mim e contendo suas lágrimas, do gosto salgado em minha boca e do primeiro nó na garganta que senti na vida.

Lembro dos dias depois. Das missas, de sétimo dia, um mês, três meses, um ano. Talvez eu fosse nova demais só para entender o que aquilo significaria, a perda me dói mais hoje do que sequer poderia naquela época.

Felizmente ou infelizmente, a vida continuou depois dele. Calma e alegre, na medida do possível. Minha mãe fez questão que nunca me faltasse nada, e era ela quem ia em todos os eventos de dia dos pais na escola. E nada nunca mais abalou minha existência. Até então.

Agora, quando encarei seu sorriso cansado, poucas rugas se formando embaixo dos olhos e cabelos bagunçados, emoções que eu não sei nomear apertam meu peito, até eu sentir uma dor digna de achar que estou tendo uma parada cardíaca. Ela me fez acreditar que seu amor por mim não possuía limites, mas eu não gostaria mesmo de testá-lo.

Havia terminado o livro que recebi de Amity em uma madrugada, e passei a quinta-feira decifrando minha própria mente por causa dele. Eu estava perfeitamente contente com o ateísmo de armário que seguia. Fiz um "sim" com a cabeça quando fui relembrada que teria de ir à igreja domingo, algo sobre quaresma, antes de sair de casa. Mas eu precisava admitir, em cada uma das páginas que folheei, lá morava meu fascínio, junto com Blight e tudo que orbitava seu mundo. Que inferno.

Decidi ir até a livraria de novo. Sem desculpas para tentar convencer a mim mesma. Sim, talvez eu tenha muitas perguntas sobre bruxaria que eu poderia facilmente fazer para o Hunter, perguntas que Amity com certeza vai se recusar a responder, mas isso nem importava tanto, eu não tenho mais um plano mirabolante, nem objetivo, só... ainda tenho um tempo livre e quero vê-la de novo. Ela disse que eu poderia encontrá-la ali, não foi?

Sexta-feira chuvosa. Temo que vou acabar chegando ensopada na faculdade. Mesmo com nuvens escuras como as de tempestades, as gotas são finas e consigo me manter seca no curto caminho entre a parada de ônibus e o único lugar onde sei que ela vai estar a essa hora. Eu devia mesmo criar coragem e seguir ela no Instagram.

Respiro fundo. Avisto Amity de longe, ela descia de uma escada apoiada em uma das prateleiras, entregando um livro na mão de alguém que eu imagino ser um cliente. Olho para aquele lugar da vitrine. "A Dança Cósmica das Feiticeiras" de Starhawk. Sério, como que tem esses livros aqui? Toda vez é um diferente e tipo, não imagino o dono pensando "nossa, hora de aumentar o estoque de livro ocultista na loja", sei lá.

Ela me vê enquanto firma os pés no chão e imediatamente desvia o olhar. Aquilo faz com que eu tenha vontade de me atirar contra um abismo. Ignoro esse sentimento. A encontro de costas, organizando uma prateleira não muito longe da porta.

– Oi de novo.

– Luz. Oi – Ela vira depressa em minha direção, cristais pendurados em seu pescoço batem uns contra os outros, os cabelos curtos, que começavam a revelar uma raiz castanha, levaram seu cheiro já tão reconhecível até minhas narinas.

– Oi – Minha mente ficou tão branca quanto as páginas de um caderno novo.

– Então... posso te ajudar com alguma coisa? – Amity mantinha sua expressão de sempre: olhar vacilante, feições insípidas. Apesar disso, surpreendentemente, suas palavras eram tão delicadas quanto o tom de sua voz.

– Eu... terminei seu livro. – Inquieta, levo meus dedos até minha orelha, mexendo em um dos brincos quase que de forma instintiva.

– Você leu mesmo? Uau – Amity franze o cenho, descrente. Finjo que isso não me ofendeu.

O Livro das Sombras [AU Lumity]Onde histórias criam vida. Descubra agora