4

44 5 14
                                    



O escritório de Fernanda no centro esportivo era um salinha com cheiro de incenso de alecrim e bonsais artificiais enfeitando a janela. Sua postura extremamente correta, seus movimentos suaves e uma paleta de cores de roupa que se resumia ao salmão e creme poderiam levar qualquer um a crer que se tratava de uma professora de pilates que dava aulas em uma academia chique da cidade. Não havia qualquer coisa ali que remetesse a leoa que víamos todas as manhãs rugir à beira da piscina. Nada em seu habitat e nada em sua aparência a não ser a tatuagem ameaçadora de uma adaga flamejante nunca explicada que marcava a pele escura de sua ossuda mão direita. Talvez os resquícios de uma juventude mais animada.

Vi o desenho da lâmina se encolher, quando minha treinadora – ou melhor, ex treinadora – entrelaçou os dedos das duas mãos e as prostrou sobre a mesa, ignorando um panfleto da abertura de uma pastelaria a duas quadras do Silva Santanna que tinha sido abandonado ali mais cedo.

— Então, último dia, não é? – ela disse, depois do que pareceu ser um minuto inteiro que estávamos sentadas uma à frente da outra.

— É! – concordei, selando a resposta com um sorriso sem dentes, tentando parecer convencida.

— Olha, não te chamei aqui para insistir que fique. Sei o quanto o mundo dos esportes é duro e ingrato e depois do que passou acredito mesmo que precise de um tempo longe. E para ser sincera, se você decidir nunca mais voltar a treinar, não estou nem aí.

"Se você decidir voltar para sua cidadezinha, levar uma vida comum. Talvez cursar biologia a distância como sempre falou. Se você estiver realmente bem eu vou ficar muito feliz por você, mas eu conheço histórias demais de ex atletas que por alguma encrenca desistiram do esporte e caíram na fossa. Sabe, gente que trocaria todas as suas medalhas por um pino de coca..."

— Eu não vou virar uma viciada, Fernanda! – retruquei interrompendo-a, incrédula com o tipo de discurso que estava fazendo.

Ela descruzou os dedos e me mostrou uma das palmas das mão, como se pedisse calma.

— Eu sei que você não vai virar uma viciada, é a garota mais careta que já treinei, mas tem várias formas de parar na fossa. Eu não quero que você volte para Pedra do Sol, leve uma vida aparentemente comum, morando de cara para o mar e nunca seja capaz de entrar nele.

A explicação fez eu me mexer na cadeira, me dando conta do assento plástico desconfortável. De repente, sentia calor, apesar do ventilador de teto ligado. Meus dedos foram de encontro a uma das listras laterais dos meus shorts, de onde logo começaria a tirar linhas incrivelmente finas de algodão em um ato ansioso. Se Fernanda percebeu minha mudança de espírito, ignorou.

— Se lembra do que me disse na primeira ligação que te fiz, quando você tinha acabado de ter alta? Você disse que achou ter visto uma mulher, alguém parecida com Isis se arrastando pelo hospital. Você não conseguia ver suas pernas, mas sabia que tinha algo de errado com elas.

Apesar de não ter tido grandes ferimentos durante o acidente em Ponta Piedade, meu estado catatonico após meu resgate me levou a uma breve estadia em São Gonçalo. Minha realidade derretia conforme os sedativos faziam efeito, me transformando em um corpo mole abandonado em uma poltrona hospitalar.

Enfermeiras passavam como tufões brancos pela enfermaria, um telefone tocava e gemidos e conversas soltas zuniam em minha mente, entretanto, tudo aquilo se silenciou em algum momento da madrugada, em que coincidentemente eu estava acordada.

Foi naquela hora que vi a coisa no corredor: uma figura humana que rastejava pelo piso, de uma forma lenta e esquisita, não natural. Sua pele era de um cinza azulado que brilhava sob a luz austera do corredor.

Corpos FlutuantesOnde histórias criam vida. Descubra agora