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Era difícil lidar com a morte. Deveria ser minha segunda experiência se eu contasse com a perda de nossa mãe, mas nem sequer tinha lembranças suas viva. O que tinha era uma colcha de retalhos, suas fotografias antigas, as pinturas do mar na parede de casa feitas por ela e um punhado de histórias passíveis de manipulação.

Isabel morreu quando Isis e eu tínhamos três anos. Pelo que eu sabia era uma boa mulher, do tipo dócil e alegre. Não era nativa de Pedra do Sol, ela nasceu em uma cidade vizinha maior e mais desenvolvida. Talvez se casar com papai e morar aqui foi sua pior escolha. Uma vida simples em um pequeno paraíso tropical não poderia solucionar todos os problemas, principalmente quando se tem uma doença mental que exigia tratamento regular.

Apesar de já ser década de noventa, acho que poucas pessoas realmente sabiam o que era esquizofrenia naquele nosso pedaço de chão. Imagino que até sua gravidez a imagem que passava era de uma mulher comum com algumas manias esquisitas. Poderia ser considerado até seu charme, como quando você acha encantador crianças calçando sapatos de pares diferentes.

Tudo mudou quando se deu conta que nos carregava na barriga. De sua perspectiva, havia algo terrivelmente ruim em sua gestação. Algo que fez sua mente degringolar de vez. A dócil e alegre Isabel se tornou ríspida e dada a episódios paranoicos. Passou a crer que havia se deitado com tal "homem do mar", um ser místico, que surgira da praia em uma noite de lua cheia e, vestindo o rosto de nosso pai, a seduziu.

Isabel acreditava piamente que o que tinha em seu útero eram ovos e não bebês. Apavorava-se com a ideia dos mesmos se chocarem entre suas entranhas. Em uma manhã surgiu no Marlin empunhando uma peixeira, a testa enrugada e banhada de suor. Implorou para que tio Santo lhe abrisse e tirasse aquelas monstruosidades de dentro de si. No mesmo dia sua bolsa estourou.

Por incrível que possa parecer o fim da gravidez lhe trouxe um pouco de lucidez. Ver que éramos apenas duas crianças humanas e não um bando de tubarões lixa acalentou sua mente barulhenta. Entre seus surtos, ela nos amou como qualquer outra mãe faria até ser atropelada na Travessia da Luz por um caminhão de frutas.

Me pergunto se ela não olhou para os dois lados da rua de propósito. Talvez estivesse cansada. Cansada de se obrigar a agir com normalidade, cansada de Helô e de outras senhoras do bairro irem visitá-la com motivos bobos, só para checar se não nos afogara na bacia de roupa.

Eu pensava em tudo aquilo desde o momento que tive tamanho para elaborar as questões até agora, mas o luto era um conceito distante. Um processo que deveria atingir os adultos, não meu eu daquela época. Agora Isis me fazia vivê-lo em carne viva, nos espaços vazios do apartamento e no meu próprio reflexo.

A tarde se arrastava devagarinho, como se o próprio tempo estivesse com preguiça devido ao calor. Don havia tirado seus tênis e se encontrava descalça e sentada de pernas cruzadas no chão do quarto de Isis. Sacos de lixos e caixas de papelão resguardavam suas laterais.

Ela tinha aberto a janela e escancarado as cortinas do quarto e o lugar perdera assim o aspecto assombrado, todavia, ainda me neguei a explorá-lo. Dei início à faxina do resto da casa, interrompida pela chegada de um vizinho do andar de cima que veio conferir o estado do sofá, mas demonstrou pouco interesse.

De tempos em tempos dava uma espiada no trabalho de Don e decidia pelo destino de algumas coisas. Poncho, por sua vez, magoado, tinha se enfiado em algum canto do apartamento fora de vista.

Às duas horas da tarde surgi à porta do quarto de Isis com dois copos de suco de cacau e um pacote de bolachas sem recheio equilibrado entre o cotovelo e a costela.

— Desculpa, até que tentei, mas não achei nada que pudesse entupir suas veias de gordura.

Don ergueu a cabeça e sorriu.

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⏰ Última atualização: Feb 19, 2023 ⏰

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