Paulo organizava as coisas para levar as crianças para fora: era aniversário de Léo, namorado de seu filho Rafa. Eles já estavam atrasados, então o senso de urgência era presente em sua voz, assim como o nervosismo de seu filho, que não queria perder o primeiro aniversário do namorado que comemoraria ao seu lado.
- Lila, você viu a chave do carro? - Perguntou ele.
- Não, pai. - Respondeu ela, guardando as coisas na bolsa - Não tá pela mesa?
- Ah, achei. - Paulo pegou as chaves que estavam na mesa da sala, próximas do controle da TV; na tela da televisão, o noticiário atualizava sobre o caso que havia prendido o interesse do Brasil inteiro, mas principalmente da família que morava naquela casa.
"O processo do ex-missionário Matias Carneiro, acusado de abusar dezenas de mulheres no seu ministério, inclusive as próprias filhas, continua correndo", dizia a repórter, "o caso chocou o país, tanto pela antiga popularidade e confiança passada pelo missionário, quanto pelo teor das denúncias, que chegaram a revelar que a atual esposa do acusado, Gisele, é sua primeira filha, de um antigo casamento".
Rafael e Lila entraram numa discussão corriqueira e irrelevante sobre alguma coisa que Rafael queria e Lila não queria dar. Paulo não deu atenção, ainda assistindo o jornal.
"As acusações, somadas a ainda um esquema obscuro de tráfico humano, foram trazidas a tona por Verônica Torres, antiga escrivã da Delegacia de Homicídios. Verônica, que tinha sido dada como morta na época do caso do Assassino da Caixa, ressurgiu denunciando o esquema de Matias Carneiro, afirmando ainda que ele faz parte de uma organização criminosa que se estende nos mais diversos setores públicos brasileiros".
Enquanto narrava os acontecimentos, o noticiário mostrava imagens de Verônica antes de forjar a morte e depois de voltar com as denúncias, de cabelo já tingido de loiro.
"Uma das suspeitas de fazer parte dessa organização era a Delegada Anita Berlinger", e imagens de Anita apereceram na TV, "que, depois de ser suspensa de suas atividades, foi encontrada morta em seu apartamento. Atualmente, a única suspeita de seu assassinato é Verônica Torres, que segue foragida".
- Pai! - Gritou Rafa - A gente precisa ir!
- Tá, tá bom, tô indo. - E desliga a TV.
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Glória estava em sua sala na Delegacia da Mulher, acompanhando as atualizações do processo de Matias, vendo as movimentações de seu advogado, assim como tocava para frente a investigação da organização. Em sua mesa, um cartão que havia escrito para Prata, que ainda estava na UTI, a quem entregaria depois do expediente. Desde que o perito havia sido internado, Anita fora achada morta e Glória ajudara Verônica a fugir, passaram-se algumas semanas. O telefone de sua sala toca e a Delegada atende.
- Delegacia da Mulher, Delegada Glória Volp. - Atendeu ela.
- Oi, Glória.
Era a voz de Paulo.
- Oi, Paulo. Tudo bem?
- Tudo sim. - Respondeu ele - Estamos indo pro aniversário do Léo.
- Que bom, manda parabéns pra ele. - Glória odiava quem rodeava para chegar no ponto central do assunto.
- Mando sim. Glória, por quanto tempo a gente vai ter que ficar com esses caras aqui na porta? - Questionou ele, finalmente abordando o motivo da ligação - Os meninos ficam tão tensos com a presença de não sei nem quantos policiais.
- Eu entendo, Paulo. - Confirmou Glória - Realmente é uma coisa que foge muito do senso de realidade dos meninos. Mas é muito importante que a escolta permaneça, pelo menos até termos certeza de que vocês estão seguros. Você sabe o motivo de Verônica ter fugido.
Paulo suspirou do outro lado da linha.
- Sei, sim. - Disse ele, por fim - Esses caras não vão deixar ela em paz tão cedo, não é?
- Isso a gente ainda não sabe. - No fundo, Glória acreditava que sim, não ia acontecer tão cedo; mas não achava justo colocar mais coisas na cabeça da família de Verônica - Mas a coisa que ela mais pediu antes de sumir foi pra que eu não deixasse nada acontecer com vocês. Aguenta mais um pouquinho, tá bem?
Segundos de silêncio do outro lado da linha.
- Ah, sim, claro. - Respondeu Paulo, como que num susto - Desculpa, eu só acenei com a cabeça aqui. Acho que tô ficando doido.
Glória riu.
- Tudo bem, ninguém tá no seu normal. - Ela pensa um pouco - Qual foi a última vez que Verônica falou com vocês?
- A última vez que ela ligou... - Ele para um pouco, tentando lembrar - Foi há umas duas semanas.
- Certo. Qualquer coisa você me avisa, ok?
Assim que Glória desligou o telefone, outro começou a tocar. Não era o do escritório, não era seu celular; era o descartável que conseguira semanas atrás. Isso só podia significar uma coisa: ela sabia exatamente quem estava ligando.
- Fala. - Diz Glória.
- E aí, quais são as atualizações do caso? - É a voz de Verônica do outro lado da linha.
- Do caso que você pediu atualizações ontem? Nada novo, Verô. - Glória suspira - Você sabe que eu tô fazendo tudo que posso pra limpar seu nome, não sabe?
Verônica hesita um pouco do outro da linha, e também solta um suspiro.
- Sei sim. - Responde ela.
- Então deixa eu fazer meu trabalho com calma. Eu sei que você tá ansiosa com isso, e eu entendo, mas você acha mesmo que eu não te diria se algo aparecesse que pudesse te inocentar?
- Eu sei, é só que... - Verônica solta uma lufada de ar impaciente e frustrada - Eu tô tão cansada, Glória. Eu não aguento mais fugir. E nós duas sabemos que não tem como eu ter matado a Anita.
- Sim, nós duas sabemos. Mas o resto do mundo não. Então aquieta o coração até lá, ok? - Glória pressiona os lábios, empática - Como você tá?
- Viva. - Responde ela.
Verônica pressiona as têmporas. Ela está num postinho de gasolina, abastecendo a moto, na beira de uma estrada. Está de óculos escuros e capuz.
- Não tô demorando mais de dois dias em um lugar só. - Continua.
- Você tá muito longe?
Verônica sorri irônica.
- Eu não vou te dizer onde eu tô, Glória. - Ela olha ao redor - Mas não tô longe. Não posso, você sabe.
- Sim. - Glória confirma do outro lado - Mas se mantém em movimento. Já que você não pode se afastar tanto, tem que tomar cuidado extra.
- Eu sei. - Verônica olha novamente ao redor - Olha, eu vou ter que ir, tá bem? Mas não esquece de...
- Te ligar qualquer coisa. - Finaliza Glória - Eu sei.
Verônica sorriu.
- Obrigada. - E desliga.
A moto abastecida, Verônica monta e pilota para fora do posto. Continua viajando pela estrada, até entrar aos poucos em ruas mais afastadas e de barro. Ela chega num pequeno hospital de estradinha de barro, discreto e pobre. Entrando, chega na recepção com um sorriso, que é recebido com reciprocidade pela recepcionista.
- Oi. Vim visitar minha irmã. O nome dela é Tânia. - Diz ela, baixando o capuz e revelando uma peruca longa e castanho claro.
Verônica entra pelos corredores até chegar em uma porta de quarto de hospital, extremamente simples, sendo guardada por um detetive disfarçado de zelador colocado por Glória. Entra, senta ao lado da cama, coloca os pés pra cima e se recosta para trás, pegando os cadernos e desenhos que estavam na caixa que Matias estava levando ao tentar fugir, lendo-os e analisando.
De vez em quando, sua visão se desvia até cravar na pessoa que está na cama de hospital, inconsciente e repleta de aparelhos conectados a si: delegada Anita Berlinger.
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Faíscas
RomancePrincipal suspeita do assassinato de sua rival, delegada Anita Berlinger, Verônica Torres se vê forçada novamente a fugir; sem saber das ameaças que ainda se aproximam, principalmente de sua família, a antiga escrivã procura um jeito de provar sua i...