Quinta

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  Eu me lembro como se fosse ontem...
  A última vez que me senti assim. E dessa vez, não foi em outubro.
 
  Era uma manhã invernal de Janeiro, no Japão. Eu tinha apenas treze anos.
  O calor dos agasalhos que eu vestia, do meu cachecol de lã vermelho, minha touca e minhas luvas, tudo feito com tanto carinho pela máquina de costura da vovó... O conforto de poder sentir, depois de tanto tempo, a maciez da mão delicada da minha mãe, a risada tão memorizavel da minha irmã mais nova... Eu não me lembro de ter visto meu pai lá.
  A neve caia em cima dos meus sapatos, e a minha irmã me irritava quando colocava gelo na minha touca, eu me lembro de brigarmos mas a minha mãe sempre esteve lá para nos controlar... Ela era tão bonita, de fato. Mas agora ela é só uma memória.
  Tudo parecia tão lento, mas tão rápido. Momentos que passavam como a luz, mas tão genuínos e frágeis que, qualquer toque poderia os quebrar por inteiro. Eu quebrei todas as minhas memórias, mas essa é especial.
  A história era contada em uma única visão antes dele aparecer; um garoto, estrangeiro. Um cabelo que batia no ombro, roupas escuras, uma pele pálida e estremecida...
Nossos olhos se reencontraram novamente, né?

  Quinta-feira de Outubro, uma da manhã.
  A luz do luar está longe de ser a minha favorita. Eu olho para ela como se ela conseguisse ler todos os meus pensamentos, me decifrar e me desamarrar de tantas formas... Sinto que talvez eu não esteja sozinho nesse mundo injusto. E se eu pudesse escolher uma companhia... Sério, o que andou acontecendo comigo?
  Apesar de eu não gostar da luz do luar, esse ambiente frio me é familiar. Olhar no rosto da lua é quase como explorar todas as minhas memórias visuais dele, Kaiser. Todos os momentos em que ele sorriu, fez alguma piada idiota, tentou me imitar falando japonês, brigou comigo por uma razão irracional, chorou ao ouvir meu nome do outro lado da linha de chamada, e aquelas vezes em que eu sorri de volta para ele... Sabe, sempre gostei de como o meu calor fazia contraste a sua frieza.

  E bem, como estou agora? Deitado no sofá-cama, na horizontal, olhando para a lua cheia que pairava sob o céu; nenhuma nuvem, apenas ela. Uma lua charmosa, porém repleta dos meus maiores segredos pessoais. Ela sabe, eu sei, nós sabemos.
  Tentei dormir duas, três, quatro vezes, mas nada funcionava. Fechava meus olhos e recebia a visita de Kaiser na minha mente. Seus olhos violetas, um heroísmo escondido por trás dessa linda covardia. Derrepente, meu mundo se tornou o dele que se tornou o nosso. Então, porque? Porque as palavras simplesmente não saiam?

  Uma linha de pensamento tão razoável, mas a quantidade de perguntas não podiam ser contadas em tanto pouco tempo; precisaria de uma outra reencarnação para isso. E mesmo que quisesse pensar mais nessa questão, algo me é mais importante. Um barulho, um ruído... Uma voz? Não, um choro, vindo do quarto de Kaiser. Me sento lentamente no sofá-cama, evitando fazer barulho desnecessário, e dúvidas me paralisam naquele lugar.

  " Okay, calma! Sem necessidade de pânico, sem necessidade de pânico... Ele deve estar precisando de mim- Vai ajudar ele! JOUI! "

  Me levanto lentamente do móvel, furtivo, e começo a dar passos largos até a porta do quarto. Sinto algumas gotas de suor nervoso escorrer pela minha testa, meu pé estabanando em algumas coisas que tinha pelo apartamento, até que consigo ficar de frente a porta. O som de choro agora é claro e audível: Kaiser está ali.
  Imprudência. Abro a porta, lentamente, sem nem pensar duas vezes. Prometi para mim, prometi para a Senhorita Liz, prometi para todos. A porta da alguns rangidos irritantes, que quase me fizeram dar meia-volta, mas isso não parece ter o afetado; dormindo, abraçado fortemente a um travesseiro branco, molhado das lágrimas que pingavam sem controle de seus olhos fechados, seu corpo pálido e estremecido...
  Caminho até o outro lado da cama e o observo antes de fazer qualquer ação; seu cobertor estava jogado do outro lado da cama, a luz do luar que adentrava pela janela do quarto iluminava seu rosto  fragilizado, dando mais ênfase as lágrimas que parecia nunca parar de cair.

  — Hum... Ka- Kaiser? - Sussurro calmamente, tentando manter a calma; o nervosismo parecia fazer parte de mim, meu corpo e mente estavam inseguros sobre o que fazer. Apenas uma certeza permanece: preciso proteger ele. - ... Ei, Kaiser.

  — Jo... Joui... - Resmungava enquanto abria seus olhos; violetas, como sempre. Kaiser se senta na cama e passa a ponta de seus dedos em sua bochecha, sentindo a umidade. Ao se virar para mim, ainda com o rosto cansado, seus olhos se arregalam levemente e, incontrolavelmente, as lágrimas caem novamente. - Você ta... ?

  — Ei, Kai! - Me sento ao seu lado, mais nervoso que nunca; será que fiz algo errado? Procuro olhar em seus olhos, demonstrando a mais pura preocupação enquanto coloco minhas duas mãos em seus ombros, pressionando um pouco. - Ta tudo bem? O que aconteceu?

  — Ah! Porra, que porra! Por que logo hoje? - Kaiser começa a limpar suas lágrimas violentamente, enquanto se auto explicava. - Fo- Foi mal, Joui, é que eu andei tendo muitos pesadelos ultimamente e... Droga- Você não precisa se preocupar, okay? - Ele olhava para mim como se nada tivesse acontecido. Como podia... ?

  — ... Kaiser. - Abaixo minha cabeça, pensativo. Podia até parecer uma ideia de louco, mas era por ele. - Posso... Dormir com você, hoje?

  — ... Que? - Indagava Kaiser, que me olhava surpreso com suas bochechas levemente avermelhadas; a luz do luar iluminava ambos nossos rostos, testemunhando o constrangimento alheio, dando para o avermelhar de nossas faces mais destaque. Uma dúvida, uma resposta.

  — Quero dormir com você hoje, só hoje. - Levanto meu rosto e olho no fundo dos olhos razos de Kaiser; sua expressão confusa entrava em contraste com minha expressão firme, tantas dúvidas e tantas respostas... - Posso?

  — Mas- Por que? - Kaiser parecia mais confuso que antes. - Se for por causa do pesadelo- Eu já disse que ta tudo bem! Eu só...

  — Não é isso... - Desvio olhar para as mãos de Cohen. Tão delicadas... Sem nem pensar muito, as seguro como se fosse vidro. Tão gélidas... - Eu to com frio, Kaiser.

  O vento frio que batia da janela para fora parecia não importar muito, aquele calor que o contato das nossas mãos gerava era mais que o necessário para aguentar qualquer tipo de friagem possível. Sinto que consigo fazer qualquer coisa dês que eu esteja o segurando. O tempo parecia tão devagar por um momento.

  — ... Ta bom, então. - Kaiser aperta a minha mão com firmeza, com um semblante exposto de sensibilidade. Soltei um sorriso gentil para ele, tentando ainda o reconfortar.

  Arrumando o cobertor e os travesseiros de forma em que eu conseguisse dormir, ficamos ambos virados de costas um para o outro, evitando muito contato. Já havia passado da hora; me sentia sonolento e pesado. Mas antes de eu finalmente cair no sono, sinto que precisava de algo a mais.

  — Ei, Kaiser. - Digo pausadamente, revisando o que estava para dizer. Minha consciência quase apagando devido ao sono, a única coisa que me veio em mente antes de dormir é... - Ta tudo bem sentir medo as vezes... Eu to aqui.

  E antes de eu dormir completamente, consigo sentir um par de braços finos envolvendo meu tronco firmemente, e uma voz rouca ameaçando falhar por trás. E eu acho que é só agora que eu me realizei do que se tratava aquelas memórias; um homem, sul-americano. Um cabelo cortado violentamente mas que combina apenas nele, roupas escuras, uma pele pálida, cansada e estremecida, com uma enorme cicatriz de queimadura...

  — Não vá... - Última coisa que escutei antes de adormecer.

  E bem, foi assim como se finalizou meu quinto dia no apartamento de Kaiser: não teve luzes do Sol, mas a luz do luar sempre será bem-vinda nesse lugar, assim como o seu conforto. Não irei a lugar algum sem você.
  As luzes estão um pouco acima do regular.

Sunlight - Joaiser #JoesarWeek2022Onde histórias criam vida. Descubra agora