Sábado

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  Em uma semana. Uma semana foi o suficiente para que eu consiga enxergar suas capacidades. Suas qualidades, belezas, pontos fortes e fracos, seus medos... O que a gente fazia a dois anos se tornou muito mais intenso nessa semana de Outubro. Cada toque, cada fala, cada sinal, cada risada ou cada lágrima. Tudo isso se tornou mais significativo do que qualquer outra coisa na minha vida inteira.
  Sempre quis entender sobre você, e estou satisfeito de que consigo entender pelo menos um pouco desse labirinto que é a sua mente. É um desafio tentar passar por ele sozinho, mas nunca cogitei desistir. Estarei aqui, até o final.
  Uma única decisão foi tomada; será que você me deixaria passar pelo seu labirinto? Pois estou disposto a lhe convencer que sim.

  Já faz muito tempo dês que voltei para o Brasil. Você mudou tanto nesse meio tempo... Aquele sorriso sem graça foi apagado bruscamente do seu rosto. Essa cicatriz que lhe faz parecer tão diferente. E mesmo assim, quando eu te liguei pra avisar que havia voltado, você chorou como se ainda tivesse treze anos.
  Confesso que chorei também.
  E eu espero poder chorar com você mais vezes.

  E você sabe porque.

  Sábado de Outubro, sete da noite.
  Havia acabado de pedir uma pizza de pepperoni para a janta. Kaiser estava fumando na sacada do apartamento, como sempre, perdido entre os prédios de São Paulo naquela noite tão fria. Ele sempre odiou o clima baixo, então estaria usando algumas camadas a mais de roupa. Os prédios iluminados, fazendo parecer com pontos de luz abaixo do céu. As estrelas também tinham destaque; estava repleta delas. Inúmeros pontilhados brancos, com tantos tamanhos e brilhos diferentes, tantas constelações a ser contadas... Mas nada disso era tão brilhante como ele.
  Me aproximo por trás, me escorando ao seu lado. De entrada, ele parecia levar um susto comigo ali, mas permanece em silêncio e volta o seu olhar para o horizonte. Realmente, era um cenário magnífico.

  — Me vê um cigarro? - Me viro para ele, estendendo a palma de minha mão. Nunca gostei de fumar, apenas fumava quando sentia ser necessário. Sabe, gosto de preservar minha saúde... Mas hoje é diferente. Essa semana toda foi diferente, na verdade; fiz tantas coisas que nunca faria, mas pouco me importo. - Por favor.

  — Uh... Ta bom? - Kaiser pega um cigarro de seu maço e me entrega, com desconfiança no olhar. - Não sabia que você fumava, Joui. Decidiu se entregar a desgraça da nicotina?

  — Não exatamente... Tenho meus motivos. - Coloco o cigarro entre meus lábios, mas logo percebo que o mesmo estaria apagado. - Kaiser, acende ai pra mim.

  — Beleza. - Kaiser pega seu isqueiro; era verde, com uma figurinha minúscula de um gaúcho mostrando o dedo do meio; a estampa dos Galdérios Abutres. Ele se aproxima de mim e logo acende meu cigarro sem problema algum. - Ta aí.

  — Obrigado. - A primeira tragada sempre é a pior. Aquela fumaça invadindo meu pulmão sempre será agonizante; solto duas tossidas travadas, mas disfarço e continuo a fumar. - Os pedreiros me mandaram mensagem nessa tarde, falaram que tudo já estaria acabado amanhã de manhã.

  — Ah, sério? - Kaiser indaga, se virando para mim. - Que bom. Vou sentir saudade de jogar playstation com você.

  — Também vou sentir saudade de perder pra você. - Digo num tom sarcástico, dando mais uma tragada em meu cigarro. - Mas confesso ter vivido muito mais do que imaginei nesse apartamento.

  — Uh? Você diz que discutir comigo todo dia foi viver muito? - Kaiser retruca, com um sorriso irônico no rosto de canto.

  — Eu to falando sério, Kaiser. - Volto meu olhar para os prédios; eles eram distantes, mas conseguia ver eles claramente. Nem conseguia perceber o quão próximo de Kaiser eu estava; afinal, foi uma decisão minha. - Mesmo te conhecendo a dois anos, sinto que descubri mais sobre você nessa semana. Seus hábitos, sua personalidade, seus gostos e desgostos... Eu nunca ia descubrir que você é alérgico a azeitona se eu não tivesse cozinhado para você. - Solto uma risada sem graça, me relembrando do momento em que quase matei Kaiser sem querer.

  Ele parecia bastante concentrado em minhas palavras, mas percebi que também não havia lhe perguntado sobre o que achava disso tudo. Seguro a palma de sua mão que estava apoiada nas barras de ferro da sacada, firmemente. Não queria o perder de vista.

  — Kai, você ta feliz? - Olho em seus olhos; aqueles olhos profundos e cansados, que só se mantiam abertos por causa da constante cafeína; aqueles olhos que se cansaram de chorar, que viram o que não deviam ter visto. Lindo par de olhos, tão escuros que chegam a ser claros para mim.

  — ... Quer uma resposta, Joui? - Percebo seus olhos me encarando de volta, mostrando confiança. Uma confiança que foi conquistada pelo tempo. Não digo nada, apenas aceno minha cabeça positivamente. Kaiser solta um suspiro... - Eu- ... Eu to feliz, Joui. Depois de tanto tempo, eu to feliz. Me sinto bem, me sinto feliz.

  Um sorriso familiar lhe é colocado. Kaiser estava sorrindo de verdade, pela primeira vez depois de tanto tempo. Um sorriso familiar; de quando ele tinha apenas treze anos naquela foto, de quando havíamos nos conhecido a dois anos atrás, de quando ele tinha bebido tanto que nem conseguiu voltar para casa, de quando ele ainda tinha a quem se apoiar. E ele sempre teve, apenas não sabia.

  — Sabe, mesmo tendo tanto em incomum... - Kaiser começa a falar, com um olhar tímido para baixo. Porém, ainda sorrindo. - Eu sinto que estamos tão- Sei lá, próximos? Eu sei que somos amigos a, tipo, dois anos mas... - Kaiser levanta seu rosto para cima. Seus olhos não estavam escuros, estavam violetas. Um violeta escuro, porém florescido. Um violeta da mesma cor da própria violeta. Ele olhava para mim como se estivesse desabafando, tirando um peso das costas, se declarando. - Joui, eu preciso saber se você também tá conectado desse jeito.

  Uma felicidade genuína tomou conta de mim. Me senti vivo, me senti exaltado, me senti como se fosse começar a chorar de felicidade; me senti como a dois anos atrás. Mas, eu não estou feliz por alguma outra razão externa. Estou feliz porque ele ta feliz. O homem da minha vida ta feliz, e eu to feliz.
  E você talvez se pergunte: qual decisão você tomou?
  Um abraço apertado, meio sem jeito. Meu cigarro caiu sacada abaixo, não que eu realmente me importasse com ele. Eu consigo sentir meu rosto pegando fogo, mas os meus sentimentos falam primeiro. O puxei para o mais perto que pudia, mas sem exagero. Queria que ele ouvisse com clareza a minha decisão. Não iria o perder, não agora.

  — Joui? - Kaiser indaga, enquanto seu cigarro também cairia sacada abaixo. Prometo lhe comprar outro maço quando isso tudo acabar.

  — Kaiser. - Me afasto um pouco, apenas o suficiente para segurar seu rosto com as duas mãos; parecia me olhar confuso, mas também com o rubor de costume. Eu estava sorrindo. Talvez chorando, não sei. Sinto que estava sem jeito, quase caindo. Mas isso não importa; foi a minha decisão. - Kaiser, eu te amo.

  O tempo sempre foi importante. O momento em que nossos olhares se encontraram, tão nostálgico como naquela manhã de Janeiro no inverno do Japão. Quando eu sorria ao jogar algumas bolas de neve em você, e você revidava orgulhosamente. Vou lhe contar um segredo: sempre fingi perder porque queria te ver feliz.
  A brisa fria que passava pela sacada naquela noite era fraca demais para ultrapassar o calor que minhas mãos transmitia ao seu rosto. Tão quente, tão confortável. Sempre gostei do calor, mesmo.
  As estrelas, tão próximas que pareciam que iam cair; conseguia enxergar, pelo reflexo do seu olho, uma estrela cadente. Não que isso me importasse, pois meu pedido já havia sido feito; ter ele para mim. A luz do interior do apartamento, fazendo companhia a luz familiar do luar, iluminando e dando ênfase as lágrimas que se formavam no rosto de Kaiser. Eu acho que só percebi que estava chorando quando senti algumas gotas pingarem do meu queixo.
  Mas tudo parou, quando ele disse:

  — Eu também.

  E então, o último dia no apartamento do Kaiser havia se encerrado: não precisava mais passar noites em claro, pensando no que fazer quando ele estivesse por perto. Não precisava mais fingir o considerar apenas um amigo próximo. Não precisava mais negar qualquer afeto físico. A única coisa que eu precisava era daquele sorriso magnífico de uma felicidade genuína.
  Aquele sorriso, apenas para mim.

  As luzes estão florescentes.

Sunlight - Joaiser #JoesarWeek2022Onde histórias criam vida. Descubra agora