O regenerador ficava sempre num dormitório pequeno quando visitava a Aldeia dos Migrantes. Não gostava tanto do lugar. As camas tinham colchões finos, o chão de madeira era barulhento, os corredores cheiravam a cocô de vaga. Mas os outros dormitórios da região em que trabalhava não eram muito melhores, e a padaria que ficava por perto fazia tudo valer a pena. O cheiro da massa tomava as ruas barrentas da aldeia com vigor, atraindo para sua porta marceneiros, soldados, ferreiros e ratos gordos.
Não podia chegar a sua clínica sem levar aqueles maravilhosos pães para seus ajudantes. Era uma rotina rígida, então os padeiros tinham se preparado. Assim que o regenerador chegava, já tinha seu pedido pronto, mas sempre ficava alguns minutos conversando com o dono, Nelson. Que sempre perguntava se não havia na vila jovens de mãos grandes e com vontade de trabalhar. Ele já estava cansado de ter essa conversa, e me disse, enquanto éramos transportados para a aldeia, que ficou aliviado de finalmente dar fim aos apelos do comerciante.
- Essa é a nossa cozinha. É mais espaçosa do que parece. Os doces ficam guardados naquele armário do lado da porta dos fundos. Não tenho tempo de te explicar o funcionamento diário, então a Olívia vai te mostrar tudo por aqui. Você vai vê-la. Parece um pãozinho seda. Amanhã o meu padeiro vai se mudar. Acho que a mãe tá morrendo de pele-de-fogo. Essa merda tá se espalhando igual praga de milharal.
- Que horas amanhã, senhor Nelson?
- Às quatro. O regenerador da região falou bem você. Disse que é motivado. Gosto da forma como se veste. Meus sacos de farinha usam tecidos melhores que você, mas você está limpo, alinhado, cabelo volumoso, boa postura. Minhas massas precisam de um ambiente limpo e inodoro. Sei que nunca fez um pão na vida. Não precisa mentir. Eu quero alguém pronto pra aprender o meu jeito de trabalhar. Vai precisar visitar alguém na vila? Eu já adianto que não dou folga, baguete.
- Bague...
- É importante que se programe bem.
- Não tem ninguém esperando por mim.
- Ótimo. Essa liberdade vai te ajudar a prosperar nessa aldeia. Diga ao dono do dormitório dessa rua que você é o meu novo padeiro. Ele vai te dar um quarto. Vamos ter mais clientes durante essa semana. Vai começar a obra para a extração da água do rio do norte, finalmente. Nova obra, mais trabalhadores. Mais trabalhadores, mais clientes - disse Nelson, enquanto saía da cozinha.
No dia seguinte, Olívia foi atenciosa, mas firme. Ela era uma boa moça com um bom sorriso. Conseguia ouvir piadas enquanto contava o troco. Tentei seguir suas orientações e o dia passou rápido, mas conheci muitas pessoas. Pessoas sujas de barro, de poeira, de vísceras, pessoas molhadas, suadas, cheias de olheiras. A aldeia parecia particularmente cruel com cada um deles lá fora. Seus uniformes conseguiam determinar mais a intensidade das suas gentilezas do que as suas emoções, que se dobravam a um mesmo cansaço que me atravessava com facilidade. Uma cortesia ausente.
A colocação do encanamento foi iniciada e durou alguns dias. Nova obra, mais trabalhadores. Mais trabalhadores, mais clientes. Mas Foi interrompida por algum motivo eu que ainda não sabia qual era, e nem queria saber. Eu estava bem. Depois de muito tempo eu tinha um lugar próprio para dormir e um trabalho com um pagamento fixo. Quatro vezes mais do que o maior valor que eu já havia recebido na vila. O mundo vai mudando ao meu redor e eu não costumo prestar muita atenção. Olhar para onde deveria estar olhando. E assim como acontece com todos, parece que isso piora quando estou feliz.
- O padre Amilton levou os pães recheados? - Olívia me perguntou.
- Sim. Mas disse que amanhã não vem. Vai estar ocupado.
- Verdade. Essa coisa esta exigindo muito conhecimento religioso. E eu estou com ele. Vamos lutar até o fim.
- Como assim? Que coisa?
- Ora! A árvore azul!
- Não sei que árvore é essa.
- Você é um sujeito bastante aéreo, baguete. Enfim, é no centro da cidade. Uma árvore totalmente azul surgiu na frente da mansão do representante da aldeia.
- Como uma árvore pôde crescer na rua mais movimentada da aldeia sem que ninguém notasse?
- Não! Ela surgiu. Apareceu do dia pra noite.
- E qual é o problema?
- O padre falou que poderia ser um sinal de Coraci, e por isso não deveria ser derrubada antes de entendermos o por que dela ter aparecido onde apareceu. O problema é que a árvore está dificultando o transporte materiais para a instalação do encanamento, porque apareceu justamente no meio do único acesso ao rio do norte. O padre conseguiu evitar a retirada da árvore por alguns dias, mas o investigador natural do representante veio dizer mais tarde que a árvore poderia ser venenosa. O que comprometeria o solo da aldeia, e com ele nossa água. Então foi descido ontem pelo representante, em caráter de urgência, que hoje a árvore deveria ser cortada e suas raízes retiradas do chão.
- E você é contra? Por que vai lutar contra a derrubada de uma árvore peçonhenta?
- Não sabemos se ela é venenosa ou não.
- Vale arriscar?
- É isso que vocês dessa aldeia não entendem! Derrubar a árvore também é um risco. Não veem assim porque não acreditam que a árvore cresceu em apenas uma noite.
- Mas estão certos. Isso é impossível.
- Não mesmo. O investigador natural tem dito não ser um acontecimento totalmente impossível. Considere que seria um façanha barulhenta demais pra não ser notada. E o meu amigo, que é jardineiro, falou que ela parece ser de um tipo muito frágil, que não suportaria um estresse tão grande. O ponto é que seríamos privados de todas as revelações de um acontecimento marítimo. E por quê? Por medo?
- Bom. Sinceramente não me importo. O dia está acabando. Vou pro meu quarto.
- Vamos protestar contra a retirada da árvore. Se não significa nada pra você, poderia vir com a gente. Considere como solidariedade entre colegas de trabalho.
- "A gente"?
- O padre e seus seguidores. Não sobraram muitos de nós depois que os membros mais velhos da igreja temeram um conflito com o representante. Alguns voltaram pra Cúpula, outros abandonam a igreja simplesmente. Então ele pediu pra gente, o grupo jovem, o ajudarmos na busca de outros apoiadores, já que sobramos apenas nós ao seu lado. Mas ninguém quer se colocar contra o representante Luís.
- Não ter bem uma reputação é a minha reputação - disse. Algo que não era nem sim nem não.
- Tanto faz, seu esquisito. Beijo. Você fecha hoje. Tchau, tchau.
Ela jogou o avental sobre o balcão e saiu, e eu comecei a limpar a cozinha antes de fechar a padaria. Eu na época de fato não me importava com a questão, mas sempre me senti mal em dizer não, ainda que custasse a minha tranquilidade.
- Com licença. - disse Patrick, o amigo jardineiro. - Meu nome é Patrick. Você deve ser o padeiro novo.
- Sou.
- Certo. Você viu a Olívia?
- Saiu a uns seis minutos.
- Queria encontrá-la aqui antes, mas acho vai ter que ser no centro mesmo. Está fechando, você não vem? Muita gente vai estar lá.
- Tanto faz.
Gostava do jeito que as multidões me deixavam invisível.
Poucos trabalhadores estavam voltando do centro da aldeia para seus dormitórios ou para a estação de transportadores a serviço da aldeia, de onde costumam sair amontoados de volta para a vila.
Patrick não falou muito sobre o que estava acontecendo por lá. Estava mais interessado em fazer perguntas sobre Olívia. Eu tentei dizer tudo que achava que ele queria ouvir sobre ela, e acho que ele ficou satisfeito. Parecia fascinado, mas eu não via pelo que. Era uma jovem espirituosa como qualquer outra jovem espirituosa. O contraste dos vestidos escuros e castos com a ousadia das palavras não era uma raridade entre as moças da região, nem o sucesso de Patrick entre elas, mas esse falava de Olivia como se fosse inteiramente única. Lia suas falhas como virtudes, e suas virtudes como flores de uma incontestável autoridade ridiculamente vasta. Via algo de diferente nela. Algo que eu não via, mas que precisava ter visto.
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Aldeia dos Migrantes
FantasyNo ano de 1256, um jovem consegue um emprego de padeiro e se muda para uma aldeia afim de melhorar de vida. Mas uma visitante inesperada começa a causar problemas no local.