Uma Revelação Furiosa

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Dos trabalhadores esfarrapados aos comerciantes mais elegantes, todos ao redor de algo, fazendo muito barulho. As crianças escalavam a fonte para conseguir alguma vantagem vertical. Não me lembro em que momento, da padaria até as redondezas da casa do Representante, o céu ficou nublado.
— Vamos! Eles estão lá no meio da confusão — disse Patrick, já começando a se esgueirar e empurrar os curiosos.
— Eu vou depois.
Não consegui acompanhá-lo. Não naquele momento. Estava enfeitiçado pelo brilho das folhas dos galhos mais aéreos que vi ao longe, sobre a multidão. Era quase um tom de azul inédito. Se é que era azul. Um brilho tão suave que deixava muito da interpretação visual para a atenção meramente, que se perdia na paz entristecida que o brilho calmo da fronde despertava em nossos corações. Comecei a me aproximar sem perceber, esgueirando e empurrando.
O alarido começou a ganhar formas verbais e substantivas. O grupo do padre, onde ia Olívia e Patrick, estava perto da árvore, todos com capas pretas, enquanto o líder religioso gritava frases de ordem: “respeitem os símbolos de Coraci!”, “não calaram a verdade com meros machados!”. Não devo deixar de relatar que a árvore não tinha apenas as folhas azuis, como também o tronco, num tom não tão vibrante quanto as folha, mas fascinante de qualquer forma. Não fosse a cor, se passaria por uma árvore robusta qualquer. Facilmente confundível com um juazeiro.
Os soldados do representante tentavam afastar os manifestantes. E quanto mais os empurravam, mais os faziam se contorcer e arrancar seus elmos.
— Já basta, padre Amilton. Essa árvore cairá! Por ordem do Império do Novo Horizonte! — Berrava o representante Luís, com a boca babada, tremulando como sua pança. Dentre outros meneios mais agressivos que os do padre.
No alto de seus quase dois metros, Paulo Flores, o general do posto militar da Aldeia dos Migrantes, finalmente conseguiu conter os religiosos e outros poucos revoltosos. E posicionou próximos da árvore, frente a frente, dois soldados com machados pesados e ameaçadores.
— A árvore cai agora! Cortem soldados, imediatamente! — Disse o representante Luís.
Os soldados se olharam brevemente antes de qualquer jeito. Quase que conversando com os olhos, comunicando certo grau de estranhamente. Seus bíceps se contraíram e os machados foram erguidos ao ar, e num movimento quase que perfeitamente sincrônico, os fios cortaram o vento e se encontraram no tronco, um acima e o outro abaixo. Novamente os soldados se olharam, rapidamente, com algo de alívio nas bochechas e nas sobrancelhas. O som seco do impacto se espalhou no silencioso áspero dos aldeões. Os soldados, levemente tranquilizados, tentaram retirar os machados estocados, mas estavam presos. A partir dos fios, a cor ardente da árvore, em segundos, subiu nos metais dos instrumentos, e consequentemente envolveu os cabos. Os soldados apavorados tentaram soltá-los, sem sucesso. Balançaram então seus ombros com a força avassaladora dos seus desesperos vultosos, e com eles pediram ajuda, mas todos tão somente se limitaram a olhá-los com o mesmo nível de entendimento que consegue um cachorro ao olhar para a lua. O azul energético tomou seus dedos finalmente, e foi quando pararam de se debater e de gritar. Totalmente paralisados, seus rostos eram tão expressivos quanto um tronco de árvore. Seus olhos eram um oceano na noite. Cobrindo seus corpos, o azul ganhou o couro vinho de seus uniformes, a pele, as manoplas pontudas de prata, os cabelos, tudo, com muito mais velocidade, e no fim, voltaram suas faces para o céu e vomitaram luz alviceleste, enquanto os machados, seus coletes, suas espadas curtas e espessas, seus elmos redondos de prata e seus corpos se esfarelaram numa poeira que, junta a luminescência suspensa, foi tragada para as profundeza incalculáveis do páramo.
Não havia uma reação esperada para nenhum homem ou mulher. Algo terrivelmente novo havida acontecido, e quem poderia dizer ou fazer algo a respeito? Reagir diante do indecifrável. Muitos, assim como o representante Luís, tiveram o reflexo mais aceitável, que foi a imediata loucura. Muitos fugiram gritando, porém uma pequena maioria gemia tapando os olhos e rolavam no chão, caso do representante, acolhido pelo general, enquanto outros apenas gargalhavam. Mas entre o pavor generalizado, uma voz firme e lúcida se manteve.
— Foi o que eu disse. Tornando minhas as palavras dos criadores — disse o padre Amilton, saindo da multidão trêmula e estridente, se aproximando da árvore. — Devo esclarecer agora, depois de tal revelação furiosa, que vínhamos conversando. Ele me revelou sua vontade. Vontade que cumprirei, pois essa nos sobrepõe. — Os cortes dos machados começaram a se expandir, as cascas começaram a cair, e os buracos se tornaram uma entrega do tamanho de uma porta. — Está árvore é uma mensageira dos deuses. Através dessa porta eu buscarei respostas. Vejam essas mãos! São as mãos que lhes oferecera as maiores verdades já reveladas nessa terra.
— Como podem as mãos de um mero homem revelar qualquer quantia sólida de verdade? — Disse Mima, caminhando lentamente de trás da árvore, com seus pulsos finos apoiados na cintura, trazendo um serpenteio resumido do vento que ondulou seus cabelos brilhantemente rosa junto ao tecido branco de seda, que a envolvia recatadamente, e aos ramos azulados acima. Incluo que sua condição estética era a mesma de todo assinalado. Provocava todos a arriscarem nela a idade em que as garotas filiadas precisam se tornar mães. Mas a postura esguia e ameaçadora indicava um desabrochar da maturidade levemente mais desenvolvido. Uma assinalada que se tornaria, gosto de pensar, uma amiga. Um assinalado, até onde sabemos, é alguém que, através de procedimentos ocultos e de uma pré-disposição de nascença muito específicos consegue se opor a ordem natural da existência em vários sentidos. Físico, fenológico, dizem que até temporal. Mima nunca se aprofundou em me explicar a natureza, ou a antinatureza, das suas habilidades. Só soube do que ela me mostrou, e ainda assim não poderia descreve-las precisamente, mas eram bastante invasivas, isso posso garantir. Parecia não considerar perigo em homens decididos. Olhava-os como formigas desorientadas. E assim ela observou o padre Amilton, logo após surgir de trás de árvore, e ainda que todos a estivessem rodeando, os aldeões tiveram, ao mesmo tempo, a mesma visão. A de que ela saiu de trás da árvore, para todos em todos os ângulos. — Sabem quem sou, e a quem sirvo. Por isso devem confiar quando digo que esta... árvore não pode permanecer nesse lugar.
— Afaste-se, vagabunda! Pois me foi revelado por nosso magnífico mensageiro que o tempo de ouvir, de seguir manipuladores imundos da criação, já passou. Regeneradores, orientadores, coletores, investigadores naturais, niveladores... assinalados e toda essa corja, são agora refugos de uma longa noite dissipada.
— Muito cuidado padre. Esta agora tão desorientado quanto o povo que tenta controlar. Acredito que até mais. Digo agora a todos que essa criatura não é um mensageiro dos seus deuses marítimos.
— Considera-se mais capaz que a mim de diferenciar um mensageiro de um símbolo qualquer? Como pôde se enganar a tal ponto? Sua espécie não luta uma batalha agora? O que faz aqui que não está com eles? Foi mandada para destruir uma pequena aldeia enquanto os assinalados verdadeiramente decisivos guerreiam contra as armas inexoráveis do império? Ou é apenas uma fugitiva?
— Meus motivos estão tão longe de serem compreendidos quanto as intenções perversas dessa... aparição. Terão que confiar e mim. Peço apenas que se lembrem de todas obras grandiosas que realizamos, não só para o Império do novo Horizonte como também para toda Braca.
— Foram todas parte de um plano de dominação que agora se revela, com o ataque ao Império do Novo Horizonte. — Disse Olivia, enquanto ajudava uma senhora a se levantar. — Apenas vá. Estamos em boas mãos com o padre Amilton, então apenas vá. Sabemos das suas capacidades, mas não julgue que por elas teremos medo de lutar.
Ao ouvir as palavras de Olivia, Mima foi tomada por uma seriedade gravíssima, porém nada hostil, evitando contato visual, enquanto a palavra lutar ecoava em seus olhos hesitantes. Depois simplesmente se virou e começou a caminhar calmamente, até sumir na esquina, momento e que o padre Amilton retomou o ímpeto verbal.
— Devo revelar agora a vontade de nosso mensageiro. Ele pede para que nos tornemos exploradores, descobridores, e me ordena a visitá-lo, para guia-los através do exemplo. Então não temam. Recomponham-se! Em breve voltarei com todas as respostas prometidas.
O padre, ao fim do logo discurso, caminhou na direção da abertura da árvore. Olivia se conteve, por segundos, com uma audácia artificial, mas viu-se logo correndo e o segurando pelas mãos, e pedindo, com uma expressão cheia de dúvidas: “não vá!”. No que o padre então perguntou: “Você confia nos deuses?”. “Confio”, ela disse. “Então deixe que seus desígnios se cumpram”, concluiu o padre. Levemente tranquilizada por suas palavras, Olivia soltou sua mão e o padre com isso pode concluir o trajeto, entrando na árvore e sumido na penumbra. Seguidamente as cascas se refizeram, cobrindo o acesso por onde o padre passara. E Olívia chorou, agudamente, abraçada por Patrick e olhando fixamente aquela árvore azul regenerada.

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