Uma Execução

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Queria tirar as pernas nuas da esqualidez incerta do chão, mas as correntes eram muito pesadas. Como toda luz ambiente chegava duma pequena grade no alto da parede, não era possível ter certeza do que era, mas fosse o que fosse, era pegajoso e quente. Sabia que, no início do dia, haviam descoberto um ninho de ratos no final do corredor, e que alguns deles não aceitaram bem o extermínio e, não fugindo, revidaram as marretadas com algumas mordidas. Talvez estivesse caída sobre o sangue desses ratos valente, sem rosto e sem nome.


Como Representante interino, general Paulo não pode evitar de reproduzir alguns costumes de guerra na nova função. Como pendurar os inimigos - nesse caso traidores - onde todos pudessem ver e temer. E queimar os baluartes dos oponentes. Mas o principal era selecionar o líder adversário para receber uma punição exemplar. Olivia sabia do preço para aquilo que acreditava ser seu dever, e seus seguidores também. Mesmo sabendo que não teriam o apoio da Cúpula das Nuvens. Ergueram as mãos quando os soldados e as tochas atravessaram ruidosamente as altas portas da igreja.


Acima ela ouvia martelos, estalos, pedras caindo ao chão e homens carregando coisas pesadas. As conversas eram difusas e abafadas, mas dentre elas uma junção de fonemas pulsava em destaque. Junção que Olivia só pode decifrar enquanto subia as escadas do seu calabouço, arrastada e escoltada por cinco soldados até a luz láctea do sol menor. "Tomadora de cabeças!", sussurros que rapidamente se tornaram gritos, porém disparados apenas por soldados. Os aldeões - mães com bebês de colo, trabalhadores de vestes rasgadas e sujas - a encaravam angustiados. Queria voltar. Implorar para Mima que não me obrigasse a assistir aquilo. Mas minhas amarras e mordaça, feitas com suas vestes brancas, me impediam ali.


Ante a multidão, com um altar rude de pedra ao centro, foi montado um palco de madeira, onde fidalgos, nobres funcionários imperiais e o Representante Paulo esperavam armados - com serras, chicotes, facas, cordas, ganchos e seu ódio - pela rebelde.


- Sabemos que os tempos não tem sido fáceis para vocês, meus protegidos aldeões. Venho tentado fazer o melhor para todos vocês como Representante temporário, o que incluí me vestir com esse traje desconfortável. Mas terríveis mba'e tem se erguido das chamas contra nós. A guerra obrigou o império a tomar medidas que podem parecer cruéis. Sei que há muitos moradores da vila aqui, nossos irmãos, e a vocês eu garanto, seus sacrifícios serão lembrados. Nesses tempos incertos, decisivos e sombrios, nós, como nação, não podemos tolerar a máxima traição. Mais do que isso, não devemos aceitar que a redentora morte acolha essa guyraçu, que desceu de seu voo maldito para abalar as direções de nossa glória. Deitem-na no altar! Deitem-na! Irmãos! Daremos a ela a velha justiça. A justiça que usamos para condenar os Assinalados, quando a gerações foram desmascarados. Pois assim como eles, Olivia, há tempos justamente desfilada, voltou-se contra Coraci para conduzir os espíritos por ele criado a uma floresta de ilusões e sombras. Irmãos, neste rito o primeiro golpe a se desferir é o desprezo. O desprezo de cada pai, mãe, filho e irmão que ela um dia conheceu, amou e por quem foi amada. Peço que por um minuto se pronuncie o silêncio de todos que a abominarão deste momento em diante, até que os deuses venham conduzir a nós, aldeões de bem, para a Terra sem Males.


Um mar de cabeças baixas foi surgindo lentamente no termino nessas palavras acaloradas. Chapeis de palha, de couro; cabelos vermelhos, pretos, castanhos, brancos; grandes e calvos. Mesmo entre os iguais, uma infinidade de particularidades, mas todas mecanicamente entregues ao mesmo gesto. Na verdade não todas. Meus cabelos emaranhados e minha testa larga não seguiram o fluxo. De certo eu me entregaria, e mordia minha mordaça, pedindo para que Mima o fizesse, inclusive. No entanto ela não se dobrou. E nosso coração ia tão pesado que puxava todas as artérias como correntes enquanto caia num fosso sem fim. Paulo nos olhava com um misto conflitante de curiosidade e desprezo, alisando a costura da bainha. Ao nosso redor, ganhamos alguns olhares, mas quando Mima estendeu nossos braços ao altar e libertou um gemido doloroso, que cortou aquele silêncio perverso tal como um gavião contra a mansidão das nuvens, todos se tornaram nossos.


- Aliados verdadeiros são valiosos, garoto. Espero que está condenada saiba reconhecer o quanto ela não te merece, dentro das poucas horas que lhe resta. Tragam ele para cá.


E os olhares que conquistamos, que antes eram de confusão, se tornaram de aflição, acompanhados de gestos e outros movimentos sutis da mesma natureza.


- Conte para nós o porquê de ter feito isso - sussurrou o Representante General Paulo. - Não é todo dia que assistimos alguém se matar com tanta coragem. E há alguns de nós que inclusive são profundos estudiosos desse fenômeno.


- Não sou pai, mãe, filho ou irmão de ninguém. Você pediu pelo silêncio destes. Não sou nenhum destes.


Mima me revelou que ao controlar meu corpo acabava se privando de quase todos as suas habilidades de assinalada. E não podia ter acesso aos meus pensamentos, ou acabaria sendo privada do próprio juízo. Ela me conhecia, e muito. Era a única explicação para ela ter dado a também única resposta na qual eu pensaria - e pensei - naquela circunstância, mas que ainda que pudesse nunca verbalizaria.


Podíamos finalmente ver o corpo de Olivia sobre a mesa, acorrentado. Ela estava em choque e mal conseguia olhar pra nós. Ali ficou clara uma verdade que com o tempo se revelaria como sendo a única verdade. "Minha promessa ainda é válida. Fica calmo", disse-me Mima em seus pensamentos.


- Amarrem ele naquela pilastra, para que assista.


- Por que, baguete? Você não merecia! - Gritou Olivia.


- Eu acredito em você! - Gritou Mima.


- Acho que já sei o que devemos cortar primeiro, cavalheiro. A língua.


Os soldados a posicionaram e puxaram sua língua, enquanto o Representante General Paulo se aproximava girando uma pequena faca nos dedos. Até que parou bruscamente, deixando a faca cair ao chão enquanto contorcia o rosto.


- O que está havendo - Disse, a muito custo, o Representante General Paulo.


- O que merecem - Gritou o encapuzado, atravessando a multidão e, num primeiro momento não reconhecido, até que alguns começassem a cochichar seu nome, padre Amilton. E de cima do palco prosseguiu altivamente. - A imobilidade, enquanto nós construímos nosso futuros livres de suas vilanias. Como é sentir que seus aliados não o ajudaram, estúpido Paulo? Como é perceber que apoiaram, por todo esse tempo, o lado perdedor, estúpida elite? Há correntes agora sobre vocês. Não mais sobre nós.


Olívia, ao perceber que suas correntes estavam soltas, jogou-as ao alto, levantando-se - prontamente com os ombros erguidos, e uma face de serena de fúria - para desembainhar a espada duma sentinela paralisada e seguidamente, com uma mão, puxar o cabelo do Representante General Paulo para horizontalizar seu pescoço e descer sobre ele, com a outra mão, a lâmina pesada e implacável, liberando, para acompanhá-la em sua queda, um animalesco grito de guerra.


Olívia soltou a cabeça sobre o palco e recuou ofegante.


- Sei que a revolta da tomadora de cabeças, a vingadora desta aldeia, encontra eco nos nossos corações. E este é o momento de ouvi-los. Venham dar fim a todos estes mba'e - disse o padre Amilton, enquanto Olivia libertava Mima.


"Você é louco?", "O que acha que o império fara conosco?", gritava a multidão em polvorosa.


- Pois assim como tornei estes inamovíveis, vamos paralisar todos o império. Darei a vocês este poder, e com ele marcharam até a capital e resgataram seus filhos.


Aquela promessa deu a eles a dose de inconsequência que faltava para que estrondosamente derramassem o sangue pelo qual ansiavam. "Poupem os soldados!", pedia o padre, mesmo sabendo que era um ato inútil, embora alguns tenham sobrevivido. Alguns feridos, outros intocados. A atenção maior foi dada aos fidalgos e altos funcionários do império, que, como peixes indefesos sobre a areia, foram despedaçados pelas mãos nuas do povo tempestuoso.


Olívia nos olhava como se eu fosse alguém novo. Alguém pra quem ela devia tudo o que tinha e teria.


- É hora de irmos, Olivia. Já estamos atrasados - disse o padre Amilton, puxando-a pelo braço.


- Para onde?


- Explico no caminho. Seu amigo pode vir, se ele quiser.

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