— É fascinante a forma como corrompemos as lendas. Os selvagens nordestinos de seis dedos falam de um pequeno lago que existiu naquele deserto imensurável onde vivem. De água dourada como as areias, mas gelada, e com ela os Abateidas refrescavam suas gargantas e peles grossas da agressividade do sol maior. E há os T’Maegises, componentes de uma das três grandes nações centrais. Povo que possui, em seu vasto território, Obeliscos portentosos, com manchas naturais de cores alucinantes. Lançados às nuvens, seus cimos são tão verificáveis para um transeunte quanto qualquer corpúsculo de poeira que se solte do seu cabelo. Moldados dos minerais retirados da Cordilheira das Rochas de Fogo, esses monumentos foram todos erguidos entre árvores tão altas quanto eles. Árvores mágicas nas noites, quando as luzes das janelas, que se espalham por elas, cantam. Vivi numa delas por algum tempo, onde ouvi de muitos moradores que a engenharia do país de T’Maegi só era capaz de produzir o que produzia porque era praticada sobre o solo de Chirrom, local onde um imenso lago realizador de sonhos foi enterrado pelo tempo. Em suas respectivas línguas, os Abateidas chamam seu lago extinto de “noite fresca” e os T’Maegises chamam o seu de “base firme”. De fato esses lagos... esse lago, na verdade, existiu. Mas causou tanta morte e opressão que os assinalados da época tiveram que dar um jeitos de bani-lo de todos as dezenas de lugares em que estava. Isso ironicamente custou de nós o mesmo preço que o Lago Zauri cobrava de todos os seus discípulos. Sacrifícios. Mas não se preocupe. Caminhando essa noite sobre essa ponte de ferro espacialmente clandestina, você pode se concentrar apenas na beleza desses cedros que estamos vendo, através desses olhos que compartilhamos. Seu sacrifício maior não será dado essa noite. Mas te garanto duas coisas. No final dessa profecia você terá sua vida de volta, e até que ela se realize não sentirá mais dores físicas. Não severas, ao menos. Peço perdão ao grande Jós Gonza e a todos os meus irmãos e irmãs, mas vou precisar da ajuda desse grande mal que ajudaram a trancafiar. Nossa presença será rapidamente percebida, mas não precisaremos demorar.
Pela manhã, sobre uma poça de chuva frente ao portão da casa do Representante Luís, passaram os pés de Olivia, Patrick e de outro jovens, membros da igreja do padre Amilton. Chegavam para negociar em busca de termos menos desfavoráveis para o trato com os trabalhadores migrantes. Foram recebidos por um caseiro tímido que os perguntou seus nomes e depois os acompanhou até o quarto do Representante, onde o encontraram deitado em sua cama, que era imponente na cabeceira e tão larga quanto seu portão. Estava descabelado e com olheiras graves, ressaltadas pela luz dura que chegava da abertura das cortinas roxas da janela portentosa atrás dele, com barras verticais, finas como um lápis, por onde no máximo um pombo poderia escapar, e que deixavam sombras que aprisionavam seu rosto; um rosto que expressava friamente uma concentração desconcerte. Os convidados, deslocados com a elegância do lugar, se atentaram ao empregado enquanto esse dispunha para eles algumas cadeiras ao lago do anfitrião, deixava um papel em branco junto a pena e tinta na cabeceira e finalmente encostava a porta com diligência ao sair.
— Agradeço que tenha aceitado nós receber, Senhor Representante — disse Patrick.
— Não é necessário. Sabe, vocês se tornaram bastante relevantes. As suas intervenções tem animado os trabalhadores. O General Paulo diz que é algo perigosos o que vocês fazem, sabe. Mas eu não. Pra mim essa relevância de vocês pode ser benéfica, isso se for bem direcionada, sabe.
— O senhor tem claras as nossas requisições? — Perguntou um integrante do grupo ao fundo.
— Hoje meu jardineiro me disse. Ele hesitou um pouco no início, quando perguntei se conhecia as 7 Condições para o Bom Trabalho propostas pela igreja do padre Amilton. Por causa delas estão falando em montar uma tal organização de trabalhadores. Resistência em tempos de crise, isso é insano. Me pergunto como um lista tão pequena pode estar causando tanto caos. Também me questiono por que estão dando o crédito a um louco; uma anedota vencida... Melhor, apodrecida.
O rosto de Olivia foi tomado por contrações sinistras ao ouvir essa última palavra. Ela se levantou com um esticar de pernas explosivo, e todos acompanharam seu movimento em seguida. Olivia apertou as costas da cadeira com a mão, se inclinando em direção ao rosto ainda abstraído do Representante.
— O senhor tem um entendimento estranho da morte. Acredita que um homem em dificuldades está acabando. Isso explica por que deixa os trabalhadores da sua aldeia na condição lamentável que estão agora — disse Olivia.
— Oh, minha criança! Faço o que faço para protegê-los. Sei que é adepta de deixar os mais fracos falarem com você. Não é a primeira pessoa que vejo a ter atitudes tão curiosas, sabe. As vezes a pureza de um movimento, ou de um líder, se comprova na simplicidade das suas peculiaridades, e eu admiro essa sua. Mas há mementos em que ela irá se tornar comprometedora demais, e agora é um desses momentos, sabe. Olhe para trás. Veja como eles está com medo. Beba esse medo. Ele te dará forças para tomar as decisões necessárias. Inclusive me permita esclarecê-las para você. Precisa demonstrar mais respeito pelo seu representante... e orientar os trabalhadores a cooperar com as verificações de entrada. Tem ocorrido muitos tumultos, sabe.
— Os tumultos acontecem porque muitos são agredidos ou dispensados indevidamente — disse Patrick.
— Acho que vocês não perceberam a situação. O dilema que temos em mãos. Explique a eles, Olivia.
— Ou cooperamos ou eles iram invadir a vila atrás dos responsáveis pela árvore azul.
— Exato, querida. Sabe que as fronteiras tem sido expandidas. Temos infiltrados na vila já a alguns dias. A situação na entrada da aldeia vem se tornando insustentável. Precisamos apenas de algumas semanas para concluir as investigações, depois tudo voltará a ser como antes. Mas se não pudermos manter o controle migratório, vamos precisar de uma intervenção mais drástica.
— Como sabe que os moradores da vila são os responsáveis? — Disse Olivia. — Pode ter sido um dos moradores, entende? Pode ter vindo de qualquer outro canto de Braca.
— Nosso controle alfandegária não é rígido. Vocês o conhece. Mas nossos moradores não teriam motivos para amaldiçoar o local onde vivem. E sabe, o vilarejo tem um histórico de nós contaminar com seus pecados. Se acreditam que os trabalhadores estão vivendo uma tragédia agora, pensem no quão maior ela pode ser no caso de uma intervenção.
— Não temos escolhas, Olivia — disse Patrick, notando que ela não apertava mais a cadeira com tanta força.
— Três semanas de investigações, no máximo. Sabemos que o general é limitado demais para organizar um acesso ordeiro a aldeia, mas pedimos que os excessos dos soldados sejam controlados. Vamos tentar manter os trabalhadores mais calmos, mas eles precisam de algo em que se agarrar e ter fé. Se tivermos mais alguma morte, o acordo termina, mas pelas mãos deles.
— Então temos um acordo, criança?
— Conhece o Bradador, Deus católico?
— Deus da justiça, mas muitas vezes confundido como o Deus da vingança.
— Bem, ele é o meu padroeiro. Em minhas orações ele tem me dito que eu devo representá-lo e fazer sua vontade aqui em Braca. Que devo interromper os pesadelos de seres perturbados pela culpa, com seu martelo e a sua foice, para trazê-los a uma realidade feita de sangue e dor. Nós vamos sair agora. Espero que os seus pesadelos o abandonem o quanto antes, senhor representante.
Os igrejeiros desceram as escadas em silêncio. O que pesava em seus corações não era uma derrota, mas uma decepção. Acreditaram que seria possível alcançar ao menos cinco propostas da CBT. Foram convencidos disso, não pelas palavras de Olivia, mas por seu espírito indomável. Aturdido naquele momento, mas ainda forte. Talvez o padre Amilton voltasse um dia. Ela ainda se agarrava a essa futuro com todo o seu amor. Mas a cada desafio imposto, esse possível regresso ia se tornando cada vez mais irrelevante.
— Vão todos para suas casas. Nós veremos amanhã — disse Olivia.
— Não é hora de reflexão. Precisamos agir. Precisamos de um plano — disse Patrick.
— Amanhã teremos um plano. Mas agora nós devemos ir para casa, Patrick.
— Está cansada não é? Quer relaxar. Posso deduzir pra qual casa você vai — Disse Patrick. Seguidamente Olivia, com os olhos arregalados, disparou um soco cruzado contra o exato centro do seu rosto. — Por que perder o foco da nossa missão por causa de um herege como o baguete? — Disse Patrick, já segurando seu nariz cruento.
— Você não íntegra mais esse movimento. Contenha-se em alguma multidão. Me apoiando ou me apedrejado. Tudo o que você pode fazer a partir de agora e nós assistir enquanto cumprimos o destino do Pai do sol maior.
Os outros religiosos cercaram Patrick e arrancaram sua capa negra.
— Eu ainda faço parte do seu destino, Olivia. Você verá! — Gritou Patrick, com os punhos cerrados para baixo, enquanto todos o deixavam para trás.
Olivia saiu dali direto pra minha porta. Parecia se aproximar mais de mim a medida que se afastava da esperança do retorno do padre Amilton. Eu ouvi quando ela chamou meu nome, senti quando ela tocou meu braço pra me contar de medos que me despertaram certa pena. Mas o meu sangue corria num fluxo alarmado. Havia algo a mais. Um risco. Não pra mim. Dessa forma eu decifrava os sentimentos de Mima. Através das traições rítmicas do nosso coração. Já que seus pensamentos eram inalcançáveis para mim, a não ser que ela quisesse. Vinham de algum outro lugar, assim como as ordens para os meus movimentos.
— Talvez o representante seja mais instável do que você imagina — Disse Mima.
— Eu também sou.
Nos dias seguintes Olivia e seu grupo se concentrariam em conversar com os trabalhadores. Nós casebres da vila, nas praça, em filas enlameadas. Ela garantiria que as agressões diminuiriam e que o acesso seria facilitado, desde que eles se portassem da forma mais ordeira possível. Colheria frutos, poucos, mais significativos. O bastante para sentirem que estavam no rumo de algo parecido com paz.
— Suas perguntas custam muito caro, Caio — disse Mima, no meu quarto, projetada como um fantasma a frente do meu corpo paralisado, assim que Olivia deixou o quarto.
— Por que não posso falar dentro da sua... digo, da minha própria cabeça? Essa mordaça é sufocante.
— É para a minha segurança. E para a sua.
— Talvez não seja fatal, mas ainda assim é desumana.
— Sim. É. Digamos que não é bem vista em nosso meio também. Mas estamos em tempos atípicos. As profecias estão se tornando cada vez mais difíceis de se encontrar.
— Por que uma profecia surgiria numa aldeia no fim do mundo?
— Engraçado como mentes brilhantes e mentes ordinárias conseguem compartilhar os mesmos preconceitos. Mas você verá, assim como os assinalados mais eminentes, que eu estava certa o tempo todo. Meus cálculos e experimentos serão estudados por gerações. E todos os seres e todos os povos farão maravilhas com eles.
— Pode pelo menos me dizer por que está se aproximando da Olívia?
— Posso cantar uma música para você? — Disse o fantasma opaco de Mima, encarando mansamente a janela, após se sentar gentilmente na minha cama estreita. — Quero sua opinião. Amanhã vou ensiná-la para a criança filha do vendedor de chapéus de couro, quando ele vier a padaria amanhã. Ela é exigente quando se trata de músicas, igual a mãe.
— Não sei o que você faz comigo. As vezes imagino que deveria estar sentindo muito mais medo do que estou sentindo agora.
— Deveria?
— Não sei. Coisas como você não deveriam inspirar confiança em ninguém. É obsceno. Mas... tem algo nesse seu sorriso. É tão sútil... e o mais sincero que já vi.
— Quer conhecer a melodia que sai dele?
— Me mostra.
— O sol maior seca o caminho;
Deixa encrustada nossa dor rubra nas paredes.
Nos varais dançam os tecidos,
Sufocando o tremor das marchas e dos lamentos.
Debruçados sobre suas gangorras vazias
Vamos espera-los para sempre.
Velando juntos seus balanços arrebentados
Vamos chorar infinitamente.
Pois os escudos violentamente os levaram;
Suas mãos finas balançaram com força as grades;
Seus olhos gorduchos deixaram a terra molhada.
Volte pra vila, meu amor. Volte do trabalho;
Venha descansar comigo. Venha me abraçar,
Assistindo o sol maior secar nossa longa estrada.
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Aldeia dos Migrantes
FantasyNo ano de 1256, um jovem consegue um emprego de padeiro e se muda para uma aldeia afim de melhorar de vida. Mas uma visitante inesperada começa a causar problemas no local.