Bem Vinda Ao Bairro Três Coroas

215 13 2
                                    

— Como eu havia dito, a área de serviço tem uma infiltração no teto que só consigo resolver em abril, até lá fique atenta quando chover, tire o tanquinho da tomada sempre.

— Sim, pode deixar.

A proprietária deu mais uma olhada na inquilina, aquilo já estava dando nos nervos de Cibele.

— O lugar até que é tranquilo, a facção da zona não faz tanta algazarra, é mais aos finais de semana, mas não invente de perambular de noite por aí, se estiver tarde nem volte. É arriscado uma moça como você morar sozinha aqui.

— Uma moça como eu?

— É. Bonita, ingênua, de fora da cidade. Tente convencer um amigo ou o namorado a morarem com você. Homem impõe respeito, te mantém segura.

A única amiga que aceitaria aquela maluquice estava morta fazia um ano, assassinada em um confronto da polícia contra os manifestantes de um protesto pacífico pelas vidas negras, porque algum idiota atirou nos policiais. O autor dos disparos nunca foi identificado, certamente não era do movimento, e Cibele nunca se recuperou daquele dia, o luto ajudou a derrubar relações que não eram verdadeiras e seis meses depois seu noivo rompeu o relacionamento.
Mas Cibele não expôs suas questões pessoais àquela mulher, apenas sorriu simpática e prometeu tentar para que pudesse ficar sozinha logo.

A clínica veterinária de Escanteio foi o lugar mais próximo da sua mãe em que conseguiu um emprego na área da saúde,  ainda que fosse de animais, ao menos pôde pedir demissão daquela loja em que trabalhava no shopping. A mudança foi organizada às pressas para não perder a vaga, feita sem o menor preparo, por sorte a locatária mantinha alguns móveis na casa, os essenciais; tinha geladeira, fogão, pia, chuveiro, tanque de lavar roupa e mesa (apenas a mesa, nada de cadeiras). O aluguel também era agradável, duzentos reais e setenta de taxa da água e luz, por um quarto, cozinha, sala, área de serviço, banheiro, servia, em todo caso, não pretendia ficar muito tempo, tinha planos de conseguir uma bolsa em medicina na virada do ano.
A maior parte de seus pertences eram livros, tudo o que tinha de importante coube em cinco caixas que foram infileiradas em linha reta na parede da sala, enquanto no lado oposto encheu o colchão inflável, não via motivos para usar o quarto, a mãe não visitaria, nem amigos, não tinha mobília para um quarto. Tirou o edredom, cobertor e um travesseiro de uma caixa, então sentou confortável com seu notebook no colo decidida em estudar até às duas da madruga, depois dormir até às cinco, eram quatro da tarde, não teria o tempo que gostaria, mas seria suficiente.

Às seis da noite se iniciou um pandemônio no bairro três coroas, eram gritos, barulho de motos acelerando, gente chutando portões. Cibele levantou assustada, guardou o aparelho na bolsa de viagem, calçou tênis, agarrou o celular e saiu em disparada para área de serviço, pois de lá iria à varanda que dava acesso à escada de incêndio. Para se manter tranquila se apegou ao que a proprietária disse e ao raciocínio depois dessa informação, a mulher havia dito que os inquilinos de baixo deveriam ser evitados, ninguém iria invadir ali se eles eram tão perigosos.
Houve movimentação na casa de baixo, o som era tão nítido que pareciam estar ali com ela.

— Filhos da puta!

— Quem esses chinas tão pensando que são?

— Eu vou matar vocês por terem a pachorra de tentar tomar meu ponto!

Uma troca de tiros se iniciou, Cibele deixou a bolsa e o celular caírem no chão, seu corpo ficou mole, caiu no piso gelado, com dificuldade rastejou para trás do tanquinho, parecia estar no meio do tiroteio, sua mente traumatizada começou a passar flashes do dia em que perdeu sua amiga, o tumulto, o corpo dela ensanguentado em seus braços, os polícias agredindo todo mundo, matando pessoas.

De repente tudo silenciou, mas depois as vozes recomeçaram, abafadas, nem mesmo o som da porta sendo arrombada foi nítido para ela.

Sete homens entraram, bagunçaram as coisas dela, vasculhando, procuravam.

— Será que é um R3 que tá aqui?

Dois homens entraram por último, diferente dos outros estavam muito calmos, um deles, o que mantinha as mãos nos bolsos frontais, era muito observador e as pantufas de unicórnio jogadas no meio da sala chamaram sua atenção instantâneamente.

— Chefe, olha aqui!

O homem andou despreocupado até a área de serviço, ao lado do tanque de lavar roupas uma mulher tremia com o corpo retorcido no chão, ela usava uma calça jeans, moletom azul e tênis de corrida velhos.

— Parece que ela tá possuída, será que é heroína?

O líder se aproximou e curvou aproximando o rosto do dela, tentou fazer contato visual, mas ela estava em estado catatônico, lágrimas molhavam seu rosto, sua expressão era de agonia. Cheirou o ar na direção dela, murmurou pensativo.

— É uma crise de pânico. — Constatou inabalável. — Ei, mulher! — Não foi respondido. Estalou a língua, se afastou dela endireitando a postura. — Saco. Vamos embora, amanhã falamos com ela.

Outro deles entra na área de serviço, assim que põe seus olhos em Cibele fica nervoso, se aproxima apavorado, mas não sabe o que fazer.

— Que droga, o que vocês fizeram?

— Nada, ela já estava assim quando cheguei. — Respondeu acuado.

O com as mãos nos bolsos e uma pinta  logo abaixo do olho, suspirou entendiado.

— Vamos Ye, o Carrapato tá com problemas na rua sete.

— Vamos deixá-la sozinha nesse estado?

— Por acaso é médico?

— Vou ao menos levá-la à um pronto socorro. Só tinham livros e roupas nas coisas dela, não é uma R3.

— Porra, mas que merda hein... Deixa ela aí e volta pro trabalho! Não dá pra sair do bairro, tá um caos, temos que nos manter firmes se quisermos o controle, entendeu?!

Ye olhou seriamente para o parceiro.

— Ivo, eu não vou deixar essa coitada assim, nós temos uma regra de não machucar os civis. Porra, olha só pra ela.

Ivo riu.

— Vai se foder. — Suspirou massageando a nuca. — Tá, fica aí tentando fazer ela voltar a si, eu e os caras vamos voltar pro trabalho, quem sabe eu desempato esse jogo e viro teu chefe.

Ye ficou sozinho com a mulher se sentindo o criminoso mais estúpido que já pisou na terra.

Marginais Onde histórias criam vida. Descubra agora