Moscas Na Mesma Teia

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Dali uma semana faria três meses que estava em Escanteio e por incrível que pareça as coisas não pioraram, nem mesmo no trabalho. Ainda que o serviço na clínica estivesse em um ritmo constante do qual ela podia suportar era muito angustiante ter que ir naquele lugar. Ficou realmente boa nos tratos estéticos dos animais, tirava uma comissão satisfatória, mas também perdia muitos clientes por causa de sua cor, tinha gente que chegava lá e já deixava claro que tipo de pessoa queriam que tomasse conta de seus animais de pedigree. Nunca mais foi abordada fisicamente no bairro nobre, mas era constantemente intimidada para não voltar. Os colegas eram outro problema, os olhares, os cochichos, o desdém, nada que nunca tenha enfrentado, mas tanta gente escrota concentrada em um só ambiente e ainda ter que aguenta-los para sobreviver a fazia chorar no banho algumas vezes. Resumindo, estancou em um dos níveis do poço.

Ye nunca mais apareceu, o pessoal do XL estava sempre a espreita como se pudessem perder o bairro a qualquer momento, isso gerava uma sensação de medo constante nos moradores, principalmente naqueles que foram diretamente afetados durante o combate entre as facções rivais, Ivo visitava algumas vezes e mostrou-se uma companhia agradável apesar do mau humor, o rapaz sempre cozinhava algo gostoso, embora sujasse muita louça e Cibele quem sempre tinha que lavar.

— Ei, tá indo onde? — Ivo correu para alcança-la, Cibele já dobrava a esquina, mas parou esperando-o, então seguiram caminho juntos.

— A lâmpada da cozinha queimou e eu tenho uns negócios pra comprar no mercado.

— Vou junto. — Levantou a embalagem de pizza para mostrar à ela. — Tenho uma entrega na rua de baixo, é o mesmo trajeto.

Depois de alguns segundos de caminhada Cibele estranhou a embalagem nas mãos do criminoso, era do mesmo restaurante que Ye trouxe aquela noite.

— Está fazendo bico de entregador?

Ele olhou para ela com as sobrancelhas franzidas.

— Você sempre me surpreende com sua lerdeza. Isso é droga, Cibele.

Ela arregalou os olhos.

— Mas o Ye trouxe pizza numa embalagem igual uma vez.

— A pizzaria é dos XL, mas serve pra esconder as entregas especiais também.

Aquele filho da mãe... A pizza era uma delícia apesar de ter sido provavelmente feita por gente do crime.

Falando nele, Ye vinha na direção deles, usava um bermudão de futebol,  camiseta do Corinthians e sandália marrom típica de idoso em veraneio. Cibele ficou nervosa esperando que ele falasse com ela, mas o homem a ignorou completamente, parou frente à Ivo e começou a conversar sobre os negócios casualmente, Cibele, que não era nenhuma cachorra para ficar cheirando o rabo de ninguém, fingiu indiferença e seguiu seu caminho. Ivo olhou de soslaio para ela, depois para seu parceiro que mudou a expressão despreocupada para chateada assim que a mulher se afastou.

— Ela não pergunta de mim?

Ivo riu, sabia.

— Ela entendeu rápido o seu recado. — Ye começou a olhar para os lados, estava incomodado com algo. — Qual o problema?

— Mulher nenhuma me trata assim.

Ivo balançou a cabeça indignado.

— Foi você quem comeu e se afastou, o que esperava que ela fizesse? Deixa pra lá, tô nem aí, tenho mais o que fazer. — Disse indo atrás dela.

— Espera. — Ivo parou. Ye virou -se para ele. — Não está se fazendo de ombro amigo pra pegar a Cibele? Se tocar nela eu te mato, entendeu?

Ye poderia ser assustador e cruel, mas Ivo não tinha medo, era como se olhar no espelho.

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