008. vinho

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— Eu preciso de uma festa. — sussurrei para Sarah depois de a entregar a garrafa de cerveja.

A loira lançou um olhar para John B e os dois ponderaram em silêncio enquanto Sarah dava um longo gole na boca da garrafa de vidro.

Franzo o cenho.

— O que foi? — pergunto.

A fogueira crepitava enquanto os dois tinham uma conversa intensa entre olhares, os rostos iluminados com a luz amarelada em meio à noite escura, apenas o quebrar das ondas e o barulho de Pope procurando uma lata de refrigerante dentro do isopor cheio de gelo destoando da conversa silenciosa.

Depois de um último olhar intenso de Sarah, ela dá de ombros e bebe a cerveja de novo, como quem diz "Faça o que quiser, então".

Então John B se rende, falando a frase quase em um sussurro.

— Tem uma festa na casa do JJ. — ele diz numa velocidade impressionante, fingindo coçar o nariz.

Sarah tenta esconder o sorriso.

— Pode repetir, por favor? Com mais clareza. — minha amiga leva a mão a orelha, o sorriso malicioso no rosto.

John B lança um olhar para o lado, como se quisesse olhar para algo atrás dele.

JJ estava lá. Deitado na areia, no breu da lua minguante, com o boné tapando o rosto. Eu tentei ignorar a presença dele esse tempo inteiro, e ele fez o mesmo. As vezes eu o flagrava me observando. Ás vezes ele me flagrava. O olhar dele era pesado em mim, intenso. Raivoso. Indignado. Palavras palpáveis no ar que nunca foram proferidas por nenhum de nós dois, e talvez nunca fossem. Eu preferia assim.

— Não precisa, JB. Eu ouvi. Mas posso fingir que não, se você preferir. — ele ri, e eu também.

A esse ponto, a insistência de Sarah com uma aproximação entre mim e o loiro chegava a ser cômica.

— Mas você sabe que, por mim, seria um prazer te ver lá. — ele sussurra para mim e eu sorrio.

Murmuro um "eu sei" e ele começa outro assunto, mas não consigo me concentrar na conversa.

Uma semana havia se passado desde tudo com Maybank. Nós dois não trocamos uma palavra sequer, mas minha língua queimava toda vez que eu o via conversar com alguém pelo celular ou quando via o Elantra prata piscando um dos faróis. Meu corpo inteiro queimava por raiva. Preferi manter silêncio para a sanidade dos Pogues, além do fato de que eu era uma recém chegada ali. Tenho certeza que eles apoiaram o amigo cafajeste de anos a quem eles, por algum motivo, queriam tanto o bem.

Eu sinto que John B sabe do que houve. Nos mínimos detalhes. Mas ele é fiel demais a JJ para contar sobre isso a qualquer outra pessoa. E eu o agradeço por isso, pois ninguém nunca ia saber do que aconteceu por mim.

Vi Sarah jogar mais um pedaço de lenha na fogueira que nos cercava, assim como vi Pope sentar na tanga, ao meu lado. Todos os três conversavam. Sarah, John B e Pope. Mas eu não conseguia os ouvir. O fogo crepitou, e meus olhos não conseguiam sair da fogueira. Os tons de amarelo do elemento iguais aos cabelo dele. O calor que oferecia, como se aquela sensação de conforto fosse ser para sempre. O fogo aquece, conforta e é a descoberta mais importante da humanidade.

Mas o fogo destrói. No lugar errado e na hora errada e nas mãos da pessoa errada. Destrói e mata.

Meus olhos pesados enquanto observava o dançar das labaredas.

Meus pesadelos estão cada vez mais recorrentes. Mais de um todas as noites. Toda vez que acordo eu vejo tudo ao meu redor se desmoronar, como se mesmo que fugindo do meu problema, ele sempre me perseguisse. Não importa o quão bem eu esteja. Todas as noites eu sou destroçada emocionalmente e fisicamente, porque fazem duas noites que eu não durmo. E eu estou exausta. No fundo, estou feliz por tudo que aconteceu entre mim e Maybank, pois não sei se teria psicológico para sustentar as provocações sem explodir em mil pedacinhos.

Mas também me sinto vazia. As provocações eram uma das melhores distrações. Por mais que eu o ache um completo idiota e sem noção, é inegável que ele tem o espírito cômico.

Me sinto confusa. Não consigo raciocinar direito.

Eu só quero dormir. Dormir uma noite completa de sono, acordar xingando o despertador e não a bagunça dentro da minha cabeça. Meus olhos ficam mais e mais pesados.

Dormir.

Só um pouquinho...

Me levanto de súbito.

— Preciso de uma dose de uísque. — é a primeira coisa que eu falo.

Sarah ri.

— Ok, senhorita.

Pope pega o isopor e puxa uma garrafa, momentos um tanto artificiais.

— Pope? — me aproximo. Sarah não me olha, nem John B.

Nem Pope. Ele não me olha, mas subitamente está de pé, estendendo a garrafa para mim. Não lembro de o ter visto sequer andar em minha direção.

Fico parada, sem ter certeza do que está acontecendo. Ele estende a garrafa mais próxima a mim.

Mas não é uísque. É vinho. Château Baret. O favorito da minha mãe. Meu pai a serviu uma taça dele na noite fatídica do jantar.

— Beba, Kiara. — Pope me encarou, mas o rosto dele não era dele.

Eu dou um passo para trás. É um pesadelo. O rosto de Pope falha e se transforma no rosto do meu pai.

— Não. Não, por favor. Me deixe em paz. — eu imploro.

Todo meu corpo treme. Minha mandíbula trava e meus olhos queimam em lágrimas e eu me desabo a chorar. Todas as noites. Minha respiração está descompassada e sinto que meu coração vai subir pela garganta.

A figura na minha frente é uma coisa. Mas não é meu pai. Não é ninguém. É minha cabeça doente. É o que eu digo a mim mesma, mas os movimentos são iguais.

Não estou mais na praia. Estou em casa. Ex-casa. Estou sentada na mesa. Eu soluço. Soluço e quero gritar. Minha mãe está bem na minha frente, sorrindo para meu pai enquanto ele a serve o vinho.

— Que horas sua visita disse que chegaria, amor? — ela sorri, bebericando a taça de vinho.

Eu choro quando a escuto falar. Mais.

— Por favor. — eu suplico.

Não sei a quem. A ninguém. A mim.

Eu abraço meu próprio corpo e fecho os olhos, rezando para que isso acabasse logo. Minha mãe repete.

Que horas sua visita disse que chegaria, amor?
Que horas sua visita disse que chegaria, amor?
Que horas sua visita disse que chegaria, amor?
Que horas sua visita disse que chegaria, amor?
Que horas sua visita disse que chegaria, amor?
Que horas sua visita disse que chegaria, amor?
Que horas sua visita disse que chegaria, amor?
Que horas sua visita disse que chegaria, amor?
Que horas sua visita disse que chegaria, amor?
Que horas sua visita disse que chegaria, amor?
Que horas sua visita disse que chegaria, amor?
Que horas sua visita disse que chegaria, amor?

A campainha toca. Ela atende. Eles brigam. Ele vai. Nós dormimos. Ela morre.

Tudo fica em silêncio. Só meu choro consegue ser ouvido.

Eu abro os olhos de novo. É a mesma cena. Minha mãe morta na sala de estar, a poça de sangue escura como vinho manchando o carpete. Uma eu mais nova corre para ela. Eu sento no chão e abraço meus joelhos. Nenhuma outra lágrima sai dos meus olhos, mas meu peito morre lentamente em agonia. Eu suspiro e tento me acalmar. As sirenes da polícia estão soando lá fora, mas não é isso que escuto. Eu escuto a voz dele, sibilando nos meus ouvidos, o calor de uma mão no meu ombro que só me provocava arrepios gelados.

Estou vindo.

E eu mergulho em escuridão.

JJ e Kiara - Onde o Amor ComeçaOnde histórias criam vida. Descubra agora