Capítulo 1: Recrutamento do Heptágono

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31 de Outubro de 2139

O Clube dos Náufragos

Mexia meu café enquanto esperava o relógio avançar no tempo. Eram seis da manhã, o bar estava vazio, todo enfeitado cheio de balões de coração e rosas vermelhas. Era a celebração da entidade de qualquer membro do Consagrado dos Sete, uma religião que cultuava sete entidades, cada um guardião e dominante de um elemento. O Ceifador de Copas era fruto da raiva de Caelum, Senhor dos Amantes e do Caos, guardião do Elemento Ar. E da dor de Spiritum, Senhora da Vida e da Destruição, Guardiã do Elemento Espírito. O Ceifador era guardião de uma da Cidade das Almas Atormentadas, uma das sete dimensões da Criação. Vestido com sua fantasia de arlequim em naipes de copas — símbolo de seu pai — morreu tentando alegrar o coração de sua amada que nunca lhe retribuiu o afeto. Recebeu a foice de sua mãe, por entender o que era ter um coração atormentado, que ceifaria a dor e acolheria as almas que não foram amadas ou impedidas de viver por ser elas mesmas. Apesar do nome, não era um lugar tão assombrado assim, mas também não era completamente feliz. Isso me fez lembrar uma vez Keery dizer: Essa dimensão não é tão diferente da nossa. Mas cabe a nós devolvê-los o que lhe foi tirado daqui.

O tilintar do sininho da porta me fez erguer o olhar, pensando que era Joseph entrando no bar, mas era meu outro companheiro de Ordem: Joe Keery. Vestia seu jeans claro, blusa branca e sobretudo amarelo pastel, o cordão dourado com uma moeda de pingente cintilava contra a luz amarelada do lugar. Fazia muito frio, e por isso, tirou sua touca. Quando me viu, acenou, indicando que se juntaria a mim. Deixou seu cetro no lugar adequado — e longe dos guarda-chuva pra ninguém se confundir e levar nosso instrumento de trabalho — e puxou uma cadeira, pedindo um expresso. Ele sempre passava o indicador sobre a corrente, como se rogasse a sua protetora, Spiritum. Na mesma mão, em seu dedo anelar, um anel dourado destacava uma obsidiana polida e brilhante, símbolo de nossa Ordem.

— Bom dia — disse numa voz rouca de sono, o rosto inchado. — Cadê o Joseph?

— Ainda não chegou. Provavelmente está chegando agora em casa da corrida dele — disse, olhando meu relógio de bolso tão preto quanto a roupa que vestia.

Joe se ajeitou na cadeira, o olhar apreensivo, bebericou seu café. O conhecia minha vida inteira para saber que todo dia do Ceifador de Copas era a mesma coisa, desde que ingressou à Ordem Obsidiana. Era normal o nervosismo, era um trabalho que nos exigia tanto do nosso corpo quanto da nossa mente. Ajudar a manter o equilíbrio de nossa dimensão não era tarefa fácil. No entanto, Joe estava mais agitado que o normal.

— Entendo que de nós três, você é o mais sensível a energia do Ceifador, mas tem algo mais acontecendo não tem?

Joe ia abrir a boca para me responder, mas o sino soou novamente e agora sim, Joseph surgiu, tirando seu sobretudo preto da camisa borgonha aveludada. Estava sem touca, o que era um milagre e não tirou os óculos. O cabelo estava bagunçado, provavelmente do vento forte lá fora. Ele também usava uma corrente prateada com uma lua crescente repousando contra sua pele, por dentro da roupa. Guardou seu cetro junto ao meu e o de Keery. Agora estávamos completos.

Se aproximou de nós dando um beijo em cada testa e se sentou. Joseph nunca pedia nada, pois já estava de café tomado. Tirou de dentro da mochila uma agenda e uma caneta tinteiro. Era 2139, mas ele nunca largava os artifícios analógicos. Dizia que o fazia sentir mais humano. Eu o encarei sem entender o que ele queria com aquilo. Joseph percebeu.

— O quê? Temos uma festa para organizar, se lembra?

— Onde tem cerveja, você sempre estará como pinto no lixo — disse.

— Você não bebe, mas sempre foi um ótimo DJ.

Keery riu pelo nariz.

— Fale por você, mas Justin Timberlake? — olhou pra mim com a cara de desgosto.

— Isso foi ele sacaneando minha playlist do meu aniversário — Joseph tem um gosto musical duvidoso tal qual seu estilo de roupa.

— Também te amo.

— Por favor, arrumem um quarto.

— Ele tá com ciúme — Joseph fez beicinho.

— Não entendi, achei que fôssemos um trisal.

Nós três rimos.


31 de outubro de 2140

Clube dos Náufragos

Ouvir os ecos das gargalhadas de Joseph na minha mente era como o uivo do vento no meio do nada. Retornar ao bar onde nos encontrávamos todos os dias me fazia lembrar como a palavra saudade soava na boca. O gosto era amargo.

Joe apareceu com café para nós dois, me resgatando ao presente. O lugar estava movimentado, enfeitado e pessoas tomavam sangria e chá de romã em homenagem ao Ceifador de Copas, Senhor dos Azarentos e dos Caminhos, Guardião dos Portões da Cidade das Almas Atormentadas. Hoje era o dia de celebrar recomeços, partidas e encerramentos. Não me sentia muito inspirado para isso, na verdade. Mas o dever chamava e lá estava eu, bebendo do meu café, agradecendo a sorte de ter Joe comigo. Só ele sabia o que eu sentia. O significado de perder um paceiro de Ordem também morava nele.

— Muito bem — suspirou. — Precisamos resolver a questão de que não somos os anfitriões do Ceifador, mas somos os Guardiões do Tabuleiro da Morte. Os novos anfitriões virão buscá-lo daqui a pouco. A merda é que o Ceifador não está feliz que não seremos os anfitriões dele esse ano.

— Que novos anfitriões?

Joe tirou um envelope de sua pasta e me entregou.

— Achei que tivesse recebido.

Era um convite preto com letras vermelhas. A família Deschanel era muito conhecida por sua ligação com Mortem, o que explicava o recrutamento das Sete Casas do Consagrado. Eu era o atual diretor da Casa Júpiter, pertencente aos protegidos de Mortem. Depois de um século de mulheres regendo a Casa, eu quebrava a dinastia matriarcal dos Deschanel. Minha mãe era filha de uma Deschanel, inclusive. O sangue, independente do gênero, estava lá. Sangue era um laço importante para Mortem, era o seu elemento.

— Por que raios minha avó não me mandou um desses?

— Porque você é homem?

Fiz uma careta de mau gosto. Um grasnado me fez levantar o olhar, um corvo acabava de entrar no bar e pousava sobre a mesa.

— Oi, Jamie — do seu bico saiu a voz de um antigo ancestral. Todo mundo o chamava de Janus, mas não era seu nome verdadeiro. Não na forma humana. Ele era da minha mãe e agora, era meu. — Reunião do Heptágono. A Senhoria o convoca.

— Mesmo? E só me avisaram agora? Em cima da hora?

— Ou é isso, ou o Ceifador de Copas vai largar o aço na cidade por não o receber no dia dele.

— Isso é culpa dele. Foi ele que levou o cetro do Joseph.

— Isso é você que está dizendo.

— Eu não acho, eu sei que foi ele. Eu vi ele pegar.

— Isso é o que você acha. Vá à reunião. Temos um plano para resgatar o cetro de Joseph, e consequentemente, a alma dele. 

A Ordem Obsidiana e o Cetro LunarOnde histórias criam vida. Descubra agora