Capítulo 7: O Recado

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01 de novembro de 2140



Então quer dizer que o inferno é assim?, pensei olhando ao redor. Não era o fim do mundo. Era um estado de espírito.  Muito cruel que você teria que viver um ciclo de culpa para sempre, sem nenhuma oportunidade de se responsabilizar por seus atos. Viveria a eternidade odiando a si mesmo. Nenhuma chance de liberdade, nenhuma possibilidade de crescer, de ser perdoado por seus erros e recomeçar. Para sempre miserável. 

Tenho uma teoria que Lúcifer se revoltou por ego e uma frustração mal resolvida o fez criar um mundo onde tudo seria sobre ele e hierarquizar a dor de almas tão medíocres quantas as dele, no intuito de sentir melhor na própria pele. Sem chance para redenção. Não que eu ache que toda alma dá para recuperar, longe de mim. Tem muitas por aí que o inferno se encaixa bem, pois viveriam enfiados em suas próprias paranoias, das quais muitas trouxeram tanto estrago aos terrenos. Esses não tinham como voltar atrás. No entanto, o inferno não era somente sobre essas almas. Era sobre um lugar de atrair e transformar cenários criados por almas que não encontraram seu total potencial e um erro os levaram a ser o apocalipse de seu próprio mundo. 

E sim, estou falando do meu primo. Um jovem rapaz perdido que não conseguia se encontrar junto aos terrenos e não acreditava em si mesmo o suficiente para mudar de fato. E por causa disso, estava possuído por uma infernal, que saciava-se de seus traumas e preenchia os vazios com promessas que nunca se realizariam. Assim, Alex viveria refém de si mesmo. Sem  nunca florescer. E minha culpa por não conseguir ajudá-lo permitiu que eu aqui estivesse. Porém, aqui não era o meu lugar. E sim com o Ceifador de Copas. Me curando e servindo a ele como fiz em vida terrena. 

Mas não... Lúcifer tinha que buscar vingança. Um clássico. Para atrapalhar todo o trabalho que era feito para equilibrar as energias entre dimensões. Porque ela não se importava com ninguém, se fosse assim, não teria criado um universo que tudo o que diz ou pensa faz sentido. Enfim, minha alma estava no lugar errado, o que queria dizer que as vibrações do inferno não me afetavam sempre. Só às vezes. Tentava não me deixar levar pela minha culpa justamente para que esse lugar não me deixasse maluco. Por isso, quando o sentimento de vazio tentava preencher meu âmago, eu fechava os olhos, e pensava em Joe, no seu abraço quente e aconchegante, em seus beijos apaixonados e no seu olhar carinhoso para mim e seu sorriso. Sua gargalhada parcelada como eu gostava de zoar e no seu péssimo gosto para bebida. Em todas as vezes que ele adormecia no meu peito enquanto assistíamos um filme e acariciava seus cabelos macios e sedosos... As longas conversas com Jamie do Clube dos Náufragos, bebendo café com Bisnaga aos meus pés...

'Au, Au, Au!". Ah, é... Bisnaga... dei esse nome a minha labradora quando era filhote, um pãozinho pequeninho, abanando o rabinho pra mim, falando: você é uma bisnaguinha, sabia?  "Au, au, Au!". Espero que Joe esteja cuidando bem dela... O latido persiste, junto de um crocitar familiar. Aperto os olhos e lá está Bisnaga correndo em minha direção, feliz da vida e Janus paira sobre ela. Espere um minuto... ah, não... 

- Olá, Joe. É bom revê-lo - disse Janus. Ele estava sem seu colar infernal. 

- O que fizeram com vocês? Por que estão aqui? - Bisnaga cutucou seu focinho em minha mão, pedindo carinho. Acariciava suas orelhas, esperando uma resposta. 

- Viemos ajudar.

- O que isso significa? Isso é uma ilusão, não é? Só pode ser -  Me levantei, olhando para a lembrança da qual estava se formando a minha volta. O prédio abandonado, o salão pichado, cheio de lixo no chão. A última visão antes de minha morte. - Lúcifer! Eu não vou enlouquecer como você quer que aconteça, você me entendeu! Posso estar morto, mas não estou refém do seu covil. Não vou desistir de lutar! 

- Ei! Joe! - me virei para Janus e Bisnaga que não saíram dali. - Nós somos resultado de sua força. Estamos aqui para mantê-lo a salvo. 

- Não posso ficar a salvo no Inferno. É isso o que Lúcifer quer de mim! Que me sinta confortável aqui. Esse lugar nunca será meu lar. Nunca!

- Joe! Me escute! Aqui não é o Inferno! É uma lembrança! Você está em sua própria dimensão! Está seguro! Não temos muito tempo, então, preciso que me escute! É um recado de Jamie e de Joe também: aguente firme, está quase acabando. Vamos tirar você daí como prometemos. Os diários foram uma ótima ideia. Estamos seguindo sua memória que brilha através da pedra da lua. Lupium e Spiritum não o abandonou e nem o Ceifador de Copas. Você vive mais através do que deixou do que imagina. Vive em todos nós. E quando precisar estar em paz, busque suas memórias. Elas serão o seu refúgio onde Lúcifer não conseguirá acessar. Terá Janus e Bisnaga de companhia. Você nunca esteve sozinho e nunca estará. Nós te amamos. 

Lágrimas caíram sobre meu rosto abraçado em Bisnaga. O laço não havia se rompido. E estava mais forte do que nunca. 


Estava no carro, estacionado diante da igreja, uma instituição que sempre foi nossa inimiga. Nunca pensei que estaria de volta a um lugar desses depois que me consagrei a uma religião politeísta. Só de olhar já me causava calafrios. Joe preferiu não vir comigo. Não queria ser um motivo de obstáculo por sua orientação sexual. Ou ele também não tinha boas memórias da sua vida cristã e preferiu evitar, indo a outro lugar. Ele acreditava numa teoria que Spiritum a um tempo vinha o inspirando a seguir. Assim como ele, Joseph também era protegido pela Senhora da Vida e da Destruição. Um dos poderes dos luminus era acessar tempos diferentes através das memórias. Para isso, Joe teria que ir até uma outra dimensão: a Cidade das Memórias. E assim talvez, acessar Joseph. Era um movimento arriscado, mas ele acreditava que os diários também eram memórias que alimentavam a pedra de lua contida no cetro e no cordão. 

Eu entendia que o cordão era essencial para lidar com almas infernais. Janus ter um desses era compreensível, por ser uma criatura dimensional, precisava se proteger de influências luciferianas. Agora, por que a pedra de lua? Até onde sei, Lupium nunca foi ligado a nada cristão ou dimensional. Seu elemento era Carne, ou seja, tudo que tivesse carne era de seu domínio. Essa dúvida ainda me rondava, e com certeza, Joe estar seguindo uma instrução de Spiritum, essas duas coisas estavam ligadas. Agora por quê? 

Abri a porta e saí do carro. O céu começava a torna-se rosa, anunciando a alvorada. Era primeiro de novembro, um dia para resolver isso ou a cidade toda estava fadada ao azar. Respirei fundo e ergui a mão para pegar na trava, mas a porta diante de mim. Lá dentro, ouvi uma voz profunda me falar: 

- Ah, finalmente você apareceu. Joseph me pediu para esperar por você. Pelo dia que Jamie Campbell Bower o traria de volta. 

- Olá, padre. Ao contrário de você, não estou aliviado em revê-lo. 

O homem de aproximadamente 50 anos sorriu, e com ele, algo reluzia em suas mãos. O último diário de Joseph. 

A Ordem Obsidiana e o Cetro LunarOnde histórias criam vida. Descubra agora