A quantidade de papéis guardados dentro da gaveta da raque foi algo que me deixou deveras intrigado. Eles não estavam em branco. Uma caligrafia feia, pintada de azul, dançava pela extensão dos papéis até suas bordas. Eram apenas anotações, daquelas escritas às pressas, provavelmente resultado do pedido vindo do outro lado do telefone.
Recados apresados e inesperados.
A caligrafia pertencia à minha mãe – única responsável por eu estar às quatro da tarde revirando tantos papéis a procura do que salvar ou jogar fora.
Era dia de faxina, segundo dia de férias, mas, ainda assim, dia de faxina. E minha mãe se comovia tanto com essa data que a tornava um acontecimento importante o suficiente para envolver minha irmã, Cléo, e eu. Então estávamos os três focados em tirar poeira da casa, revirar os pontos cobertos de tralhas, e talvez sumir um pouco com a bagunça acumulada e coisas não tão necessárias.
Minha mãe nega, mas ela é sim bastante acumuladora. E eu herdei isso dela, porém passo a maior parte do tempo me convencendo que não. Era fácil acreditar que tudo o que guardo, minhas anotações, eram necessárias de algum modo. Tanto quanto esses inúmeros telefones, que provavelmente foram lidos apenas uma vez, pela única pessoa qual entenderia o que estava escrito nesse amontoado de papéis.
Tínhamos uma agenda telefônica, exatamente por isso sei que esses papéis anotados deveriam estar no lixo há muitos anos.
No entanto, lhes deixaria separados, talvez mamãe precisasse deles, algum dia...
Estivera tão entretido limpando a raque – e com aqueles papéis – que somente descobri ter-me desligado um pouco da realidade quando ouvi a campainha da casa.
Eu estava sentado no chão, então coloquei os papéis em um canto – para não me esquecer de separá-los mais tarde – e me levantei. Senti uma dor nas pernas, mas segurei um chiado do fundo da garganta para que mamãe não ouvisse meu lamento e me culpasse por não me exercitar de vez em quando.
Fui até a porta, limpando as mãos nas calças jeans. Quando a abri, devo ter mostrado toda minha sútil surpresa ao encontrar o rosto conhecido de meu amigo, Miguel. Ele parecia um pouco desconcertado, mas com um familiar ar confiante. Me olhou de cima a baixo, porém, não ficara envergonhado por fazê-lo descaradamente. Nem por, provavelmente, constatar minha blusa branca amarrotada e manchada.
Fora poucos os segundos que ficamos ali, os dois olhando um para a cara do outro. Acho que eu esperava uma espécie de sinal, ou talvez um choque de naturalidade. Durante esses poucos segundos, pude reparar em muitas coisas, para minha própria surpresa. Os cabelos negros de Miguel estavam estranhamente penteados. Talvez por conta do tom tão escuro dos fios, ou por sua franja partida cair um pouco sobre o rosto, a cor de sua pele estava camuflada por uma palidez que eu não reconhecia. Então foi fácil meus olhos descerem dos seus pretos e brilhantes até os lábios grossos e vermelhos.
— Quem- ah! Miguel, como vai? — Escutei a voz de minha mãe, alta o suficiente para Cléo, que estava nos fundos da casa, ouvir.
Miguel sorriu com todos os dentes, desviando seus olhos de mim para a figura de minha mãe.
— Bem, como vai a senhora?
— Eu vou bem também. Não me chame de senhora, já disse que para você apenas Cíntia. — Mamãe adorava repreender Miguel por chamá-la de senhora, e sei que ele se lembrava em não fazê-lo, mas sua respeitosa educação não o permitiria um ultraje como esse.
— Me desculpe. — Ele riu ao final, finalmente tampando aquele tanto de dente perfeito.
— Porque não o convidou para entrar, Ian? — É claro que o tom amigável de mamãe mudara para falar comigo. — Entre Miguel, só não repare a bagunça.
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Adoráveis Garotos - Max Melim
RomanceIan foi uma criança de relativamente muita sorte. Aos sete anos, os caminhos de Ian se cruzaram com dos, extremamente idênticos, gêmeos Malta: Leo e Miguel. Ambos ajudaram o garoto a enfrentar uma nova vida em uma nova cidade, e somente por isso, I...