Estar em um corpo físico novamente tem sido estranho. Voltar a ter as necessidades básicas de um ser humano, poder dormir em uma cama confortável, cantar, interagir com os vivos sem que eles corram ou me expulsem, é incrível. Até mesmo sentir a água gelada do chuveiro, que sempre gostei — água quente nunca foi o meu forte. A sensação de viver de novo é maravilhosa, como se essa vida fosse para ser minha, mas, ao mesmo tempo, me corrói por dentro. Eu não queria sentir tanto ódio e mágoa; queria partir há muito tempo, mas meu coração não deixa. A sensação de impunidade não me permite descansar, e nunca vai, até que eu leve aquele desgraçado para o inferno comigo e deixe o mundo livre desse filho da puta.
Mesmo tendo dormido bem, sinto-me cansado, como um louco sem ânimo. O cansaço da alma não vai embora tão cedo, e isso me irrita. Mas, pelo menos, já consegui o corpo. Agora, preciso me organizar e ir atrás das provas, sem levantar atenção ou suspeitas. Mas como pegar um objeto enterrado com um corpo em um cemitério privado?
Eu não queria incomodar Liliana, e, na verdade, prefiro que ela não se envolva nisso. Muito menos que tenha lembranças que a façam reviver tudo. Quero vê-la feliz, longe dos holofotes e dos olhos daquele miserável. Meu filho ainda não reencarnou, mas há uma previsão de que ele será filho dela no futuro. Dói saber que não vamos ter o nosso final feliz e que ela pertencerá a outro homem, mas é melhor assim. Se Deus lhe deu outra vida, sem lembranças do passado, é uma nova chance, e eu não quero atrapalhar.
Quem sabe, um dia, do outro lado, a gente se reencontre e o nosso amor se torne eterno. Mas, infelizmente, vou precisar dela e de seu dom para chegar até onde fui enterrado. E, com a ajuda de um bom amigo do outro plano, pegar meu caderno de músicas e agenda com alguns contatos, que pedi para minha mãe enterrar junto comigo. Caso eu morresse antes do tempo, queria que algumas músicas e informações fossem enterradas comigo, para que não caíssem nas mãos de golpistas.
— Liliana? — Adentro a sala que reservei para ela ficar por enquanto, até mudarmos para um lugar maior. Antes de concluir qualquer objetivo, seja ele rápido ou demorado, quero deixá-la bem, confortável, com um lar e um bom emprego. Eu a contratei como minha assistente pessoal justamente para mantê-la por perto e dar alguma referência boa no futuro. Pelo que vi no currículo, ela não tem muita experiência, nem empregos anteriores, e, no mundo de hoje, isso é ruim.
— Oi? Precisa de algo? — Ela se levanta de trás do pequeno computador, e reparo o quão bonita ela fica de vestido, especialmente na cor marrom. É o completo oposto de sua versão passada, que combinava mais com cores claras e vivas. Ambas têm a mesma tonalidade de pele, mas é algo estranho e inexplicável.
— Sei que o acordo era eu tomar as rédeas a partir de agora, mas não posso chamar atenção. E, ultimamente, o desgraçado que habitava esse corpo fez algumas merdas por aí, e os paparazzi estão atrás dele. Você, por outro lado, não atrai a atenção deles. Eu preciso ir até onde fui enterrado, tem coisas importantes lá. O Curt vai te ajudar, ele vai fazer todo o trabalho sujo. Vou te esperar no hotel! — Sorrio sem mostrar os dentes.
— Tenho a leve impressão de que você me vê como seu capacho! Porra, Pac, eu odeio ir a cemitérios e você sabe por quê. Fico exausta, esses espíritos não me deixam em paz! Eu não vou! — Ela diz, levemente irritada, e volta a se sentar.
Que ideia! Já podia imaginar que a resposta dela seria um belo “não”. Esqueci que existem milhares como eu, ou até piores, espalhados por todos os cantos — principalmente em cemitérios, igrejas, hospitais, festas... A energia dos vivos que frequentam esses lugares nos alimenta de uma forma enlouquecedora, como um vício. Uma cocaína, eu diria.
Vou ter que dar um jeito de ir sozinho, nem que seja disfarçado. Também tem a questão da conservação dos objetos. Peço a Deus que pelo menos algumas partes tenham ficado intactas.
— Eu vou sozinho, mas você vai ter que viajar comigo até lá. Vou precisar dos seus serviços! — Aproximo-me por trás dela, colocando as mãos na cadeira, observando a pesquisa no computador, que é sobre ela mesma.
Fotos e textos sobre Liliana estampam a enorme tela, bem maior do que as da minha época. Outros eletrônicos também evoluíram de forma incrível, tornando até mesmo as discussões de casal simples e descomplicadas, tudo por mensagens de texto. Isso as torna sem graça, sem emoção. Lembro-me de nossas muitas brigas por motivos bobos e, às vezes, por algo sério. A emoção de sentir saudade dela e perceber o quanto fui idiota, indo atrás, às vezes sendo recebido com beijos e, outras, com o buquê que eu mesmo comprei sendo arremessado na minha cara. Sinto saudade de segurá-la em meus braços, em meio a seus surtos durante as brigas, e depois tudo acabar em uma transa incrível ou, simplesmente, em uma noite quente de amor. Foder e fazer amor — duas coisas completamente diferentes.
Ah, se eu pudesse voltar no tempo e fazer tudo diferente. Não a teria feito chorar, nem desperdiçado meu tempo com coisas banais. Teria aproveitado melhor os últimos oito anos da minha vida, dedicando mais tempo a nós dois e à nossa família.
Malditas festas. Maldita fama. Malditos vícios no trabalho e na maconha. Maldito seja quem tirou a minha vida, a da minha mulher e a do meu filho!
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Até a Nossa Última Vida●Tupac●
Fanfic"Você ainda me amaria se eu não tivesse toda essa grana?" Dinheiro, drogas, armas e mulheres - é disso que um rapper precisa para viver, certo? Mas, por trás dessa fachada, existe algo muito mais profundo. Ela era como um lírio selvagem, delicada e...