XII - Nígás Si Kigal

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Níĝáš Si Kigal: do sumério, "Terra do Silêncio Maldito"

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O cheiro de uvas o alcançou antes que pudesse voltar a ver com clareza.

O aroma doce que inalou era intoxicante e familiar, quase um portal para lembranças de seu passado. A súbita luz fez seus olhos arderem, e sentiu-se debaixo do feixe de um holofote. Piscou fortemente, lacrimejando, mas logo o brilho retrocedeu e pôde ver a suave luz matinal que o envolveu, com seu calor morno e gentil beijando o pouco de sua pele que estava descoberta.

À sua frente, toda a tensão pareceu evaporar da mulher que o guiava, os ombros nus dela relaxando de imediato. Suas mãos, que estavam fechadas em punho, se abriram e, mesmo sem ver, Mathias sentiu que ela estava sorrindo. A paisagem por si só fazia-se capaz de apaziguar todas as preocupações dela, então ele também olhou.

Diante de seus olhos, um campo de vinhedos delineava a paisagem, se estendendo distante de um rio cristalino que corria até perder-se de vista. Às margens das águas, uma vegetação ligeira serpenteava ao encontro de uma estrada de pedras calcadas. Uma brisa quente soprou por ele, e a direção do vento o fez olhar para a cadeia de montanhas que os rodeava. A leste, um tapete esverdeado cobria os picos dos montes, enquanto a oeste as rochas escuras arranhavam o céu.

O vale era quente, como as regiões mediterrâneas que tinha visitado há muitos anos. E quanto mais tempo passava parado, apenas absorvendo os detalhes da paisagem que os rodeava, mais pensava estar nos campos de sua infância.

Quando olhou para cima, o céu estava no belo azul da madrugada, quando as primeiras luzes da manhã tingem o firmamento com tons laranja e magenta. Longínquo, no desfiladeiro onde as montanhas se separavam e na direção que o rio corria, o horizonte alaranjado resplandecia com a beleza do sol nascente.

A mulher se voltou para ele, mas no olhar da sua algoz já não havia a irritação de antes. Os olhos escuros se fecharam pacificamente e, apesar dela estar morta, parecia irradiar vivacidade. Um gesto indicou que deviam prosseguir andando.

Pisando sobre a grama, ao invés da estrada de pedras, sentiu-se de volta ao seu lar na Espanha. Muito antes de sequer meditar na existência de anjos ou demônios, quando ele corria com os pés descalços sobre a grama e terra que rodeava o vinhedo onde seus pais trabalhavam, sentindo o sol brilhava sobre sua cabeça. Naqueles tempos, suas únicas preocupações eram retornar a tempo do almoço e depois deitar-se junto às videiras para admirar o céu. Aquele passado parecia ter acontecido há uma eternidade, mas conseguia lembrar que o perfume das uvas era o mesmo, e agora sentia-se embriagado pelas memórias.

Os lugares que tinha visto enquanto era guiado por Asmodeus, apesar de serem similares ao mundo real, não conseguiam captar a verdadeira essência da natureza como ali. Seus olhos se disparavam para todos os lados, tentando absorver cada aspecto daquele lugar tão belo, tão humano, tão...

Tão alheio ao Inferno.

Mas quando o pensamento surgiu, não ouviu a voz da sua mente falar as palavras. Seus olhos se arregalaram.

Ele não conseguia ouvir seus próprios pensamentos.

Quando tentou gritar, não sentiu suas cordas vocais vibrando, e o som que deveria sair veio mudo. Repetiu, e o resultado foi o mesmo.

Quando seus pulmões se expandiram — sem necessidade, já que estava morto e não precisava de oxigênio —, a respiração não fez som algum. O rio que corria a certa distância não gorgolejava e os ventos que cortavam o vinhedo não uivavam. Na terra firme, seus passos não faziam som algum e nem o farfalhar do vestido da mulher podia ser ouvido.

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⏰ Última atualização: Jan 22, 2023 ⏰

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Clavicula Satanae: A Chave de SatãOnde histórias criam vida. Descubra agora