A manhã de domingo chega como qualquer outro dia daquele final de mês: com um sol estridente e brilhante que faz um inferno na Terra.
Trey rola para fora da cama, com calor, mas se sentindo renovado da noite de ontem. Tropeça em meio aos cobertores cinzentos, enquanto esfregava seus olhos, indo direto para o banheiro. O espelho reflete sua figura sonolenta logo que entra, repleto de ataduras e esparadrapos, que sua mãe tinha feito questão de colocar, apesar de não precisar. Aos poucos, retira todos, revelando apenas alguns resquícios de cicatrizes nos locais.
Melhor do que eu esperava.
Isso o faz lembrar de algo muito importante, assim que percebe também seus olhos avermelhados. Ele abre o seu espelho, se encontrando com prateleiras quase vazias, tendo do mais básico, sua pasta e escova de dente, até uma seringa ao lado de uma cartela com três frascos de líquido incolor.
Retira os últimos dois itens.
Já era final do mês, o que significava que iria completar o prazo de dois meses sob efeito da droga, que mantinha sua forma humana o mais estável possível.
Segue os procedimentos com rapidez, dando uma batidinha na seringa e empurrando o êmbolo com cuidado para tirar o excesso de ar.
Sua veia fica visível o suficiente e ele insere a agulha da forma que sua mãe o ensinou, não recorda da primeira, ou segunda, ou décima, vez do procedimento, mas nesse ponto já se tornou uma memória muscular. Não era necessário ter todo esse cuidado, mas romper uma veia não era nem um pouco divertido, e a noite de ontem demonstrou isso muito bem.
Apenas um formigamento fica pelo local onde a seringa é inserida, e, terminado o processo, ele só para e espera.
Aguarda encarando os azulejos brancos do banheiro, uma ansiedade crescendo no seu peito e nada do que deveria acontecer ocorre.
De novo...
Suspira fundo e espia se a porta do seu quarto estava fechada. Sua audição fica mais aguçada e tudo que ele escuta é uma conversa abafada no primeiro andar, e os roncos de Miguel.
Certo, tudo limpo.
A porta do banheiro é trancada de forma silenciosa e suas mãos se dirigem, rapidamente, a mais um dos frascos.
O mesmo processo se repete, com a agulha pairando novamente sobre o seu braço.
E se tiver outro ataque?
Ele cerra seus dentes, ficando tenso com a possibilidade de ser inútil em um possível ataque. Talvez o metamorfo só tivesse tentando assustar os dois, mas isso não anula a possibilidade de ser uma ameaça verdadeira. Culpe Miguel e seu medo irracional que o infectou.
A seringa se afasta da sua pele e ele começa a guardar o material, com sentimentos conflitantes.
Até o dia da Academia eu posso tomar a outra dose e tudo volta ao normal...
Ele sai do banheiro tenso e seu caminho até a porta é interrompido pelo caderno vermelho se destacando em sua escrivaninha preta.
Eu anotei o que aconteceu ontem?
Pensa até chegar a conclusão de que tinha ignorado sua obrigação. Pegando um pitoco de lápis, que estava jogado pela mesa, ele coloca a data e começa a anotar os acontecimentos do dia anterior.
Sua mãe sempre mandou ele ter coisas importantes anotadas, devido os efeitos colaterais da droga. Porém, depois que a dosagem foi aumentada para suprir qualquer instinto e estabilizar sua forma, aquele ato se tornou uma verdadeira necessidade, principalmente após decidir aumentar ainda mais a dose nos últimos meses pela falta de efeito em seu corpo.
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Entre Nós
Ciencia FicciónAté que ponto mentiras podem ser boas? Até que ponto verdades podem ser catastróficas? Até que ponto será necessário chegar para que laços tão fortes sejam destruídos? Em uma Terra pós-apocalíptica, que sofreu uma forçada reestruturação de tudo que...