Capítulo 2

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Acordo com as lágrimas escorrendo sobre minha pele. Tento evitar pensar sobre a perda da minha avó, ou a possível perda de meu avô, mas essa recordação invade meus sonhos antes mesmo que consiga evitar que as lágrimas escorram pelo meu rosto. Nem ao menos dormindo consigo sentir aquele fino fiapo de paz de novo. Não sobrou nada além da droga do aperto no peito, como se eu estivesse destinada a senti-lo para sempre. Dou leves batidas no rosto, tentando voltar ao normal antes de enxugar as lágrimas. Isso não é hora para ter uma crise. Abro as persianas à procura de ar fresco e sinto o vento frio da madrugada invadir o meu quarto. 

— Mais um dia... — resmungo antes de me ajeitar e vestir a farda. 

Dou uma última olhada para o quarto quando vou até a porta. Os certificados de melhor aluna emoldurados em quadros. A caminha de Pandora ao  lado do guarda-roupa. O meu ursinho de pelúcia feito pela minha avó, jogado na minha cama de casal. Rose tentou comprar os melhores móveis para pôr no meu quarto como se fosse o suficiente para eu esquecer da morte de quem eu tanto amava ou do tempo que não esteve presente. O seu dinheiro continua sendo a única maneira de mostrar que está arrependida por tudo. 

 Passo pelo corredor e suspiro ao ver Rose esparramada, de bruços sobre o lençol, com um de seus vestidos mais curtos e extravagantes. Como hábito, retiro-lhe o salto e fecho as persianas, por fim, cubro seu corpo com o cobertor antes de fechar a porta. Não é como se eu a detestasse, mas às vezes costumo refletir se essa seria minha função como filha ou se seria a dela, como mãe. Alguma vez ela ao menos tentou assumir esse papel? 

Antes que pudesse sair pela porta da frente, sou surpreendida pelo miado de Pandora em minhas costas. 

— Você quer comida? Que novidade — falo ao avistá-la com sua pata dentro da vasilha de ração. 

 Agacho para dar-lhe comida e acabo hipnotizada em seu olhar. As pessoas dizem que meus olhos cor de esmeralda são lindos, mas não chegam aos pés dos da minha gata. A cor de seus olhos é de um azul fraco e cristalino como flocos em tons de neve. É como se Waterfall tivesse ficado nela quando viemos para Itália. Enquanto a encaro, acabo tendo alguns flashbacks de quando minha avó estava viva, na noite que me presenteou com essa gata pelada. Recordo dela ter comentado que Pandora seria meu anjo da guarda. Não que esteja reclamando, mas nunca vi um gato com uma personalidade tão estranha. Duvido que essa bichana faça outra coisa além de pedir comida e me observar com seus olhos esbugalhados durante a noite. Ainda não me vem à cabeça como Pandora aguentou o frio terrível de Waterfall se não contém pelo, nem como se acostumou tão bem quanto eu quando nos mudamos.

O carro para subitamente em frente à delegacia, deslizando pela rua úmida. Saio do veículo batendo a porta com força por causa do motorista ter freado bruscamente e entro na delegacia resmungando. A princípio, quando passei no concurso, Rose não gostou muito da ideia de eu seguir essa profissão, por ter medo de ver em algum noticiário a chamada "mais uma jovem policial morta" junto a uma foto minha, fardada. Porém, como eu já imaginava, ela deixou de se preocupar após eu iniciar o treinamento. 

Sigo até os canis no fundo do prédio, onde está Rubi, ou como a nomearam, "a cachorra mais eufórica do canil". Mesmo sendo um lugar bem movimentado com policiais entrando e saindo a todo momento, de todos, Rubi é a única que me presenteia com boas vindas, mesmo que seja com saltos e latidos. 

— Oi, garota — falo ao abrir a grade. 

Conduzo-a até a área de treinamento e, enquanto caminhamos, noto que o abano do seu rabo segue um ritmo acelerado. 

— Não foi à toa que te apelidaram dessa forma — digo para ela, que me retribui com um olhar de dúvida. 

Começo o seu aquecimento de hoje e enquanto a observo correr, por um momento consigo ver aquele filhote de pastor alemão. No início foi difícil me acostumar com essa nova vida, principalmente no colegial. Não havia muitos alunos que queriam puxar papo comigo, então me empolguei com Rubi. Tive de doá-la ao canil da polícia, pois não podia ficar com ela no apartamento. Era teimosa e brincalhona, mas acabou melhorando quando comecei a visitá-la e adestrá-la. Foi meu primeiro contato com a polícia. 

Os Últimos MestiçosOnde histórias criam vida. Descubra agora