09. QUEM SOMOS NÓS?

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Estava difícil conversar com Dona Ana. Desde que chegou, a senhora ainda tentava lidar com a perturbação que cruzou o seu olhar naquela manhã. Já havia se passado uma semana desde a morte da sua vizinha e amiga, e lidar com a perda dela de uma maneira tão horrível perturbava o seu sono. Entoou diversas ave-marias e simplesmente ignorou as batidas na porta e a movimentação desnecessária do resto das pessoas naquele prédio. Mas de madrugada, quando acordou e foi para a janela, viu ele. Foi por um instante. Pensou que estava vendo coisa, mas renovava sempre as lentes dos seus óculos e estava enxergando muito bem. O Opala verde musgo estava parado em frente ao prédio, do outro lado da rua e dentro dele havia o relance daquelas íris azuis. Era o padre. Um arrepio correu pelas suas costas e o peito palpitou em angústia. Tinha algo errado.

Por trás da cortina a mulher se manteve de pé observando o carro que permaneceu ali por horas durante a madrugada.

Quando o veículo se foi, algo clareou na sua mente, como se a ficha tivesse caído. Tinha algo muito errado ali. Tomou um banho, penteou os cabelos e rezou um terço, na tentativa de ter para si algum tipo de sabedoria.

O apartamento 101 estava fechado há mais de cinco anos. O provável dono o abandonou e nunca mais voltou, deixando o espaço vazio. Alana e Henrique arrombaram o imóvel e com a ajuda de Bruno vasculharam cada canto dos cômodos de paredes cheias de mofo e infiltração atrás das minúsculas câmeras instaladas por ali. Mas de uma maneira estranha, aquele imóvel não tinha nada, parecia ser o lugar mais seguro do resto do prédio de três andares.

Bruno foi discreto ao levar os seus materiais pelas escadas até o apartamento. Ele convenceu Alana e Henrique a manter as câmeras nos mesmos lugares, porque de acordo com ele, poderia hackear e ter noção do que eles viam.

E foi exatamente por essas câmeras que os homens viram a movimentação de Dona Ana que bateu no apartamento 101 acompanhada por Helô. A senhora foi recebida por Alana, que não dormia de verdade a dias. A senhora entrou no imóvel tendo certo medo de Henrique. Ele nunca atiraria nela, mas no estado em que sua cabeça fervilhava, não poderia confiar em muitas pessoas.

— O novo padre da paróquia veio aqui. — Bruno, Alana e Henrique trocaram olhares. Lia entrou no apartamento ficando perto de Helô.

— Como ele é? — A mulher engoliu em seco desviando os olhos da atenção de Alana.

— Tem olhos azuis, é branco, alto. — Henrique murmurou uma enxurrada de palavrões.— Ele apareceu na igreja logo depois da morte da Benedita, disse que veio para visitar e se mostrou tão amável que eu não pude dizer não para o padre. Ele pediu para vir aqui, conhecer o lugar, abençoar a gente.

Desde quando a morte abençoa?

— O que te fez vir aqui falar com a gente?

A pergunta de Alana ficou no ar enquanto os dedos inquietos giravam nas bolinhas de madeira. Dona Ana parou e ergueu os olhos para eles.

— Eu vi ele parado em um carro do outro lado da rua ontem e lembrei que antes dele ir embora naquele dia, ele topou com a gata e disse que tinha alergia a gatos.

Era loucura demais para lidarem sozinhos.

— Qual é o nome dele, Dona Ana? — A voz de Helô estava mais tranquila do que o nervosismo dentro dela.

— Noah. Padre Noah.

— Se esse homem é algum padre, eu sou o Papa.

Henrique passou por eles e deixou o apartamento sendo seguido por Helô.

— Henrique, Henrique, espera! — Alcançou seu braço e o rapaz voltou-se para ela. — Onde você vai?

Ele não respondeu. Helô suspirou.

— A gente tem que ir na delegacia, — diminuiu a distância com ele. — nós temos provas suficientes para colocar essa gente na cadeia.

Os olhos escuros dele se fixaram na câmera no canto do corredor e tomou Helô pelo braço, arrastando ela até o térreo. Nem todo o desinfetante do mundo foi capaz de tirar aquela mancha de sangue do chão e das paredes. Aquilo parecia um campo de guerra sem todas as armas e estratégias, apenas vigilância e violência gratuita.

— Você viu a quantidade de pessoas que essa seita maldita assassinou ao longo de décadas. Eles nunca foram presos e agora nós somos os seus alvos. Já entraram aqui diversas vezes sem a gente perceber e é só uma questão de tempo até nos pegarem. O Heitor não quer saber da gente, o Seu Raimundo tá apodrecendo na cadeia e a gente não pode fazer nada porque a faca também tá cortando a nossa carne lentamente.

Henrique nem ao mesmo piscou ao falar cara a cara com aqueles olhos castanhos.

A garota suspirou.

— A gente pode ir em outra delegacia.

Ele soltou seus ombros e se afastou.

— Por que tem tanta certeza assim que irão nos ajudar?

— Antunes falou que…— Henrique negou a cabeça só em ouvir o nome do seu caso. — conhece um detetive muito bom na DP do Centro e…

— Você acredita mais nele do que em mim? — a interrompeu.

Ultimamente Henrique estava sendo movido por medo, desespero e insônias recorrentes. Não conseguia relaxar de maneira nenhuma, nem mesmo quando encarava aquelas íris que sempre achou tão bonitas.

— Não é sobre acreditar em um ou em outro, Henrique. É sobre salvar a gente. Olha para esse lugar, — gesticulou ao redor. — não é mais o mesmo prédio, uma hora ele vai desabar sobre a gente e eu quero estar bem longe daqui.

Os olhos escuros a analisaram atentamente, percebendo que Helô não estava entendendo o que rolava ali.

— Você realmente acha que ir embora daqui depois de tudo o que a gente viu vai ser fácil?

— Por que não seria? — os lábios tremeram.

— Eles sabem sobre nós, Helô.

— Do que você tá falando?

— Tem câmeras espalhadas por aqui. Esses caras, sejam lá quem eles são estão vigiando a nossa vida 24 horas por dia como a porra de um Big Brother doentio.

Ela riu de nervoso.

— Você tá louco. — negou com a cabeça. — Isso é impossível, Henrique.

— Como você acha que o assassino da Dona Benedita sabia que ela era tão sozinha sendo que ela mal saía de casa, ou onde ela estava naquela noite?

— Para com isso. — O que ele dizia era mais pavoroso do que o seu olhar sombrio.

— Para você de acreditar que alguém além de nós mesmos pode nos salvar.

Henrique se distanciou e saiu do prédio deixando Helô sozinha com um bando de fantasmas.

O Assassinato no Edifício 83Onde histórias criam vida. Descubra agora