Capítulo 6

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EMMA D'ARCY

"Atire seus paus e pedras em mim

Mas não me diga que sou uma causa perdida

Não me diga que sou uma causa perdida

Diga que você está de saco cheio de mim

Mas não me diga que sou uma causa perdida."

Eu amo Olivia desde os meus cinco anos de idade.

Na época, tão pequena, eu não poderia ter a noção de como o mundo funcionava, nem das questões tão complexas de gênero e papéis sociais, porém eu estava absolutamente confiante sobre quem eu era, ainda que nem todos pudessem me ver da forma como eu já me via através do espelho. Só que quando conheci Liv, uma garotinha de cabelos acobreados e olhos castanhos grandes, sempre esbugalhados, como se ela estivesse espantada com o tamanho do mundo e cada pequena novidade que havia nele, eu me senti em casa. Como não me sentia na minha própria casa, com minha família. Porque eu vi em seus olhos que ela me enxergou, tanto que me tratou como menina "por engano" na nossa primeira conversa.

Olivia olhou para mim, aparentemente um menino afeminado em roupas sociais, incluindo uma gravata borboleta cor de rosa e um cabelo lambido para o lado, sorriu e disse: "você é uma menina engraçada." Eu perguntei porquê e ela me respondeu: "porque se veste igual a um menino. É esplêndido." E na época eu achei fantástico alguém me compreender tão bem, me enxergar de forma tão nítida. Anos depois é que fui achar a coisa toda ainda mais incrível quando pensei numa garotinha de cinco anos usando o adjetivo "esplêndido" com tanta propriedade. Olivia era brilhante desde sempre.

Apesar da insistência dos adultos em me tratar no masculino, Olivia recusou a ouvir quem quer que fosse. Ela não acreditava que eu pudesse ser um garoto, e quando eu lhe confirmei, em segredo, que não o era, Liv sorriu orgulhosa de si mesma e disse apenas "eu sei, eu sempre soube."

Nós nos amamos desde a infância. Por isso começamos a namorar tão cedo. Foi algo totalmente natural. Pelo menos para nós. Os outros ao nosso redor estavam preocupados por puro preconceito com minha condição. Mas, tempos depois, quando comecei a tomar bloqueadores hormonais e fui bem aceita pelos meus pais, consequentemente o colégio onde nós estudávamos foi obrigado a se adaptar também. Era um colégio burguês estúpido, e Olivia só estudava lá porque tinha bolsa devido as suas notas excepcionais. Ela tinha um Q.I um pouco acima da média, mas seu pai nunca fez nada a respeito porque estava ocupado demais trabalhando arduamente para sustentá-la sozinho, porque a mãe tinha morrido quando Olivia era só um bebê.

Eu nunca entendi como alguém tão incrível como Liv poderia me amar. Ela, que era tão inteligente, tão forte a ponto de sobreviver sem ter dinheiro como eu, sem ter uma mãe, e ainda assim sempre ser doce, sorridente, receptiva. Eu me enxergava como uma coisa tão defeituosa e quebrada que não podia compreender como ela me dirigia tanto amor. Acho que no fundo quem tinha problemas de autoestima era eu, não Liv. Talvez por isso eu tenha me tornado tão obcecada em querer seduzir os outros, em cativar a atenção das pessoas. Uma maneira horrível de tentar provar a mim mesma que eu podia despertar afeição nos outros.

Quanta estupidez...

Queria ter uma máquina no tempo para voltar ao passado e consertar as coisas, mas sei que a vida não funciona dessa maneira e isso me rasga o peito cada vez que eu penso em tudo o que perdi. Em tudo o que vivemos. Em tudo que não vai voltar.

Ainda com a mão sobre sua barriga volumosa, eu me mantenho imóvel encarando seus olhos de perto. Liv não consegue desviar assim como eu. E o seu olhar é tão profundo, carregado de sentimentos que eu consigo ler claramente. Eu consigo enxergar a sua mágoa, a sua raiva, mas também o seu amor. Ela ainda me ama e isso me traz alívio.

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