Capítulo 15

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- Dois anos depois - 

Enid teve uma noite inquieta, algo não estava certo. Ela se remexeu sobre a cama, pelo que parecia uma eternidade. Temendo despertar Wednesday dos braços de Morfeus, decidiu tentar adormecer outra vez na sala. O corpo suado e pegajoso pediu por um banho urgente, assim ela o fez, se enfiando debaixo do chuveiro para sentir aos poucos a tensão se dissipando.

Depois de alguns minutos, Enid vestiu um pijama mais fresco, agarrou a manta sobre o sofá para se aconchegar sobre a poltrona com o livro inacabado em mãos, talvez uma leitura lhe ajudasse a pegar no sono novamente.

Enid compreendeu os motivos de Wednesday preferir as madrugadas para escrever suas histórias, pois através da quietude noturna que os pensamentos inquietos seriam libertos da cabeça da escritora para vagarem pelo mundo sem qualquer interrupção.

Para os escritores inquietos, o silêncio era um bom amigo, mas Enid não gostava tanto assim, pois seu lado humano preferia o caos da vida sob a claridade do sol. Madrugadas muito quietas abrem espaço para pensamentos intrusivos nada amigáveis, principalmente uma preocupação particular que rodeava aquela casa nas últimas semanas.

De repente, durante a leitura, tudo ficou muito quente. Enid se levantou para abrir um pouco a janela, deixando o ar fresco adentrar. Através da janela, observou uma gata acompanhada do filhote atravessando a rua, a gata olhava para trás esperando o filhotinho muito pequeno acompanhá-la na curta travessia, até que sumiram entre os arbustos do quintal vizinho tempos depois.

Instintivamente, Enid colocou a mão sobre a barriga, tentando afastar os pensamentos inseguros. Abandonou a janela para retornar a poltrona, buscando focar na leitura do livro de contos que Wednesday lhe presenteou no último aniversário. O livro era de uma escritora brasileira que Enid nunca tinha ouvido falar, apesar da ignorância cultural típica dos norte-americanos, ela se apaixonou imediatamente após ler os contos intimistas, cheios de narrativas poderosas sobre as coisas banais do cotidiano.

Clarice Lispector tornou-se uma amiga inesperada, durante as madrugadas desassossegadas de Enid. As vezes ela era uma amiga tranquila, porém tantas outras noites seria uma daquelas pessoas que atormentavam sua vida com trechos excessivamente obscuros e reflexivos.

Enid compreendeu o motivo de Wednesday presenteá-la com aquele livro em particular. Apesar de fugir completamente dos gêneros criminal e horror, as histórias do cotidiano poderiam ser igualmente aterrorizantes, pois não existe nada mais bizarro que o dia a dia de pessoas comuns.

"Abre a boca e sente o ar fresco inundá-la." - Enid leu em voz alta, se aconchegando mais na poltrona macia sob a luz amarela da luminária.

"Por que esperou tanto tempo por essa renovação? Só hoje, depois de doze séculos. Saíra do chuveiro frio, vestira uma roupa leve, apanhara um livro. Mas hoje era diferente de todas as tardes dos dias de todos os anos. Fazia calor e ela sufocava. Abriu todas as janelas e as portas. Mas não: o ar ali estava imóvel, sério, pesado. Nenhuma viração e o céu baixo, as nuvens escuras, densas."

Enid sentiu o suor escorrer pela têmpora até parar sobre a clavícula.

"Como foi que aquilo aconteceu? A princípio apenas o mal-estar e o calor. Depois qualquer coisa dentro dela começou a crescer. De repente, em movimentos pesados, minuciosos, puxou a roupa do corpo, estraçalhou-a, rasgou-a em longas tiras... O ar fechava-se em torno dela, apertava-a.."

A loira sentiu o estômago revirar de repente, precisando se levantar às pressas para correr até o banheiro e evitar um incidente sobre o tapete da sala. A estranha similaridade daquele trecho com seu dilema noturno era demais para suportar.

Cara MiaOnde histórias criam vida. Descubra agora