Capítulo 1

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O restaurante Carmona ocupava um sobradinho em uma rua tranquila do bairro da Vila Madalena, em São Paulo. A entrada era por um portão baixo de ferro que levava a uma pequena alameda. Um caminho de alguns metros através de um jardim bem cuidado, com flores e ervas utilizadas na cozinha. Lá dentro, o ambiente era ao mesmo tempo elegante e moderno, acolhedor e charmoso. Havia apenas dez mesas. Quarenta lugares, ocupados por uma clientela fiel, que frequentava o bistrô em busca dos pratos saborosos da chef Manuela Carmona, acompanhados pelos drinques sofisticados da estonteante e sexy bartender, Cherry Paula.

Naquela noite de março, o salão estava cheio e a suave melodia instrumental das caixas de som se misturava ao tilintar dos copos e talheres e à conversa animada dos clientes. Na cozinha, todos trabalhavam concentrados e Manu achava que, apesar dos contratempos da tarde, tudo corria bem. Pelo menos até que visse a bartender cruzando a porta vaivém que levava ao salão.

Paula raramente ia à cozinha quando o restaurante estava funcionando pra valer. Em parte porque seu trabalho no bar a mantinha permanentemente ocupada, mas sobretudo por conta do efeito que costumava causar na equipe. Paula não era apenas bonita. Era sensual. Muito sensual. Incrivelmente sensual, na verdade.

Ruiva, um metro e setenta, atlética, olhos verdes, tatuagens coloridas pulando pra fora das roupas decotadas, era uma fonte ambulante de volúpia e erotismo. Por tudo isso, os homens simplesmente não conseguiam se concentrar perto dela. Era tiro e queda. Bastava por os pés na cozinha para começar a sinfonia de bandejas caindo, pratos quebrando e cozinheiros praguejando diante de queimaduras e toda a sorte de pequenos acidentes.

As duas amigas haviam percebido o que passariam a chamar de "efeito Paula" logo no começo da sociedade. Por isso concordaram que ela ficaria no salão, onde seu magnetismo de mulher dominante entretinha magistralmente bem os clientes do sexo masculino. A cozinha seria território de Manu, que, tímida e ligeiramente destrambelhada, não se sentia nem um pouco confortável no salão, com todos aqueles sorrisos e olhares dissimulados. A dinâmica funcionava perfeitamente bem assim. Manu cuidava do alimento para o corpo, enquanto Paula fornecia alimento para os olhos e para o espírito.

Agora, contudo, no auge do movimento, por algum motivo inexplicável lá estava ela. Com os seios brilhantes saltando do decote e uma expressão de urgência no rosto maquiado, inegavelmente ameaçando o bom andamento dos trabalhos, que já ocorriam em modo acelerado.

No grande fogão central, com doze bocas e seis fornos, meia dúzia de panelas ferviam, exalando vapores e aromas diversos, que se misturavam numa verdadeira festa para o olfato. Dois cozinheiros comandavam frigideiras em fogo alto, vez ou outra lançando no ar assustadoras labaredas avermelhadas. Ao redor, nas demais bancadas, seis profissionais vestidos de branco se movimentavam concentrados e silenciosos, como uma companhia de balé apresentando um espetáculo complexo, mas bem conhecido e ensaiado por todos os integrantes.

Vez ou outra alguém falava alto, pedindo um ingrediente, informando que um prato havia ficado pronto, ou tecendo algum comentário sobre o andamento geral dos trabalhos. Na maior parte do tempo, contudo, só se ouvia o borbulhar das panelas, as carnes chiando na grelha, os talheres de preparação batendo no alumínio dos caldeirões e frigideiras.

Paula entrou, olhou ao redor, mas, ciente do risco que apresentava ao bom andamento da noite, parou bem ali, ao lado da porta, diante da bancada alta de inox onde os pratos eram cuidadosamente finalizados por Manu Carmona.

- Temos uma questão na mesa dez, Manuelita - exclamou com a voz rouca e séria.

Do outro lado do balcão, vestida num dólmã branco de chef com o nome do restaurante bordado no peito, Manu se encontrava mergulhada no frenesi do trabalho. Conferia todos os pratos minuciosamente, finalizava com colheradas de molho, gotinhas de reduções coloridas, ervas frescas, raspas de limão, queijo ralado na hora, frutinhas, folhinhas, raminhos e assim por diante. Estava, como sempre, suada e descabelada, a face corada pelo calor do ambiente, e só uma pequena parte de seu cérebro dava atenção à amiga.

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