24 de Abril de 1994
Hoje o dia foi corrido pois eu não estive em casa.
Fui na casa de minha vizinha estrangeira.
Claro que tudo está indo ocorrendo em uma velocidade que eu não havia previsto, mas estou ansiosa para contar até os mínimos detalhes!
Já começo dizendo que lá dentro é lindo, ligeiramente tive a sensação de estar viajando para outro país, os tapetes, as cores, os objetos e a presença dos perfumes me deixaram tão à vontade que sentei no chão.
Eu deveria ter ido ontem, mas eu não havia ido pelo simples motivo: queria descansar um pouco mais antes de ir trabalhar na segunda-feira.
Ok, sei que minha fala soou como preguiçosa, mas é feriado e emendei, pois para mim só haveria sentido começar a minha nova vida na segunda-feira, então tive que aproveitar ao máximo.
Há um detalhe importante a ser dito, eu não estava sozinha com ela e mais, você acredita que ela me fez buscar meus filhos em casa?
Não acreditei, eu não havia levado eles porque simplesmente achei que incomodaria a presença deles lá, afinal são crianças e você sabe que toda criança é chegada numa bagunça.
Tudo o que minha vizinha justificou foi:"É almoço para a família, busca as crianças que eu espero aqui"
Sem nem pensar fui até em casa, assim que entrei pedi para eles desligarem a televisão e pedi para que colocassem roupas bem bonitas.
Quando voltei pedi para meus filhos se sentarem e ficarem quietinhos.
Para minha surpresa, eles não abriram a boca em nenhum momento e se sentaram do meu lado, acho que estavam com vergonha, mas assim que pegarem intimidade aposto que vão se soltar rapidinho.
Breno e Miriam ainda trouxeram um ou dois brinquedos (não entendo o porquê de terem levado já que não brincaram por muito tempo) já o Theo não quis trazer nada e ficou grudado no meu braço.
Houve um momento em que reparando bem, na verdade ele estava olhando para mim, mais especificamente para o meu cabelo e para alguns lenços no sofá. Olhei para ele sem entender e quando ele abriu a boca me fez uma pergunta tão certeira que fiquei corada:
-Mamãe você também vai usar pano na cabeça?
Olha, na hora eu não sabia onde enfiar a minha cara, fico surpresa com a sinceridade das crianças, mas a do meu filho me surpreende a cada dia que passa, antes que eu pudesse responder a dona da casa abriu um sorriso enorme e disse:
-Se Deus quiser, sim!
Achei que meus filhos iam estranhar a reação dela, mas eles começaram a comentar coisas e o comentário do meu filho Breno foi o mais surpreendente.
-A mãe ia ficar linda com pano na cabeça.
Não consegui ficar brava com ele e nem com os irmãos, até porque…não nego o fato de que acharia interessante usar esse véu. Aliás como elas conseguem deixar esse pano fixo na cabeça?
Quando ela chegou com os pratos de comida, meus olhos brilharam e quase salivei.
Aliás devo ressaltar, os eram pratos CHEIOS. Ela nos deu pratos que me fizeram sentir como se eu fosse um pedreiro.
Nós tivemos que comer a metade porque não aguentamos comer tudo ( mas a comida estava deliciosa.)
Ela ainda quis porque quis, que a gente levasse um pouco de cada coisa para casa, mas só lembramos de pegar depois.
Assim que terminamos o almoço me ofereci para lavar a louça. Nossa anfitriã não havia gostado muito da idéia, mas insisti tanto em lavar que ela acabou cedendo ao meu pedido.
Depois de almoçar e lavar a louça, as crianças acabaram dormindo no chão, quando me sentei no chão a vizinha me chamou para sentarmos à mesa e seu semblante havia mudado em um passe de mágica.
-Preciso conversar com você.
-Claro. O que quer falar?
-Marta me contou que você está procurando alguém para ficar com seus filhos enquanto você trabalha.
Fiquei em choque no momento.
É como eu havia dito no início, se eu fosse sentar e parar para refletir, chego a conclusão de que as coisas estavam acontecendo rápido demais, a gentileza, honestidade e generosidade exacerbadas, o almoço, será que todas essas coisas tinham algo em troca?
Como ela conseguiu tocar nesse assunto sem vergonha alguma? Obrigada Marta por ter aberto a boca.
Não tive opção e confirmei.
-Sim…eu preciso sim mas não tenho dinheiro o suficiente para pagar alguém.
Ela ficou em silêncio por alguns minutos e me soltou:
-Eu cuido deles.
-O que?! Mas por quê? Por quê vai cuidar de crianças que você mal conhece?? Por quê está sendo gentil conosco? Por quê está sentindo toda essa compaixão?
Na hora coloquei a mão na boca e comecei a chorar e me sentei ali no chão. Me senti péssima por ter gritado com ela, por ter explodido ali mesmo...
Todos os dias nos quais não escrevi aqui, eu havia chorado de desespero, chorando em busca do clamor de Deus. Eu detesto chorar, detesto muito! Só choro em caso de extremo cansaço e quando choro sinto meu corpo perdendo toda a força que tem.
A senhora se sentou do meu lado e me disse algumas coisas:
-Em minha religião, é inadmissível que você durma com fartura enquanto seu vizinho padece, quando bati o olho em você vi um reflexo de mim quando era menina. Simpatizei com você, com seu recato e força.
-Eu? Recatada?
-Me deixe terminar de falar!
-Claro,Desculpe.
-Gostei mais ainda de você quando Marta e as meninas me contaram que você gosta da nossa cultura e da religião. Então achei que cuidar dos seus filhos poderia nos aproximar. Caso queira aprender sobre a religião posso te levar na masjid, e se Deus quiser você entra para a comunidade.
Mal pude acreditar no que ouvi, eu, brasileira vinda do nordeste entrando em uma religião árabe? Como? Demorei um tempo para assimilar tudo que havia ouvidom
Incrédula, eu questionei se era possível uma pessoa como eu ser aceita e ela disse que sim, novamente não acreditei no que ela havia me falado e para demonstrar que falava sério ela me pegou pelo braço e praticamente me ordenou a acordar as crianças e arrumá-las.
Na hora me assustei e perguntei à ela:
-Você quer sair da sua casa para me levar em um templo? Mas mal acabamos de nos conhecer!
-O que tem? Eu quero ajudar e simpatizei com você.
-Sim, isso é bom, mas você vai mesmo pegar todo esse trânsito só para me fazer conhecer parte do seu mundo?
-Mas é claro! Aliás vai botar uma roupa, chega de enrolação, se eu disse que vou fazer é porque vou fazer!
Não tive palavras para argumentar contra, levei as crianças para casa e as arrumei o mais rápido que pude.
Todos nós descemos até lá embaixo na portaria, um detalhe importante: antes de entrarmos no carro ela colocou um lenço em minha cabeça e cobriu meus braços com um casaco.
Você não vai acreditar para onde fomos, acabamos indo para o Brás (claro que isso não é um BAITA de um motivo para estar feliz, afinal lá é um caos, um caos sujo e barulhento) mas com excessão dos adjetivos, nós fomos em um templo islâmico.
O templo era lindo, eu e as crianças ficamos maravilhados, fomos bem recebidos e foi uma tarde bem maravilhosa.
Pode-se dizer que o dia foi maravilhoso, por agora preciso parar de escrever. Vou colocar os meninos para dormir e eu preciso de um banho quente.
Até um outro dia.
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O diário de Debórah, da dor ao islam.
General FictionA história irá relatar o cotidiano de Debórah, uma mãe solo de 3 filhos em uma São Paulo dos anos 90. Após 7 anos vivendo em um relacionamento abusivo, ela decide recomeçar ao lado de seus 3 filhos pequenos , Theo, Breno e Miriam. No meio de sua jo...