Capítulo 2

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Carmine


Aquele menino da praça, de olhar sombrio marcados por olhos cinzas, que hoje sei que são como os do pai, quem diria que seria meu melhor amigo?

Ele diria.

Depois de um tempo convivendo com Raoul, aprendi muito sobre o seu mundo. Ele não se envolve, as pessoas ao seu redor são sempre usadas por ele, seja por prazer ou por qualquer outro benefício. E não é sem querer, ele sabe tudo que faz e o que causa nas pessoas, só não liga. É como se não tivesse a capacidade de se importar com os sentimentos alheios ou consequências. Quando ele quer uma coisa, não tem nada que fique em seu caminho.

Foi exatamente assim naquele dia em que nos conhecemos. Eu lembro que não ofereci muita resistência, mas posso dizer que ele não desistiria enquanto eu não dissesse sim ao seu estranho pedido de amizade.

Nos dias seguintes eu ouvi várias conversas dos meus pais. Meu padrasto não confiava muito no homem cheio da grana que bateu em nossa porta me oferecendo uma bolsa de estudos. Ele só o convenceu quando disse que seu filho tinha dificuldades de fazer amigos, mas que não foi assim comigo. A sinceridade dele os convenceu.

Com o ouvido encostado na porta do quarto, ouvi tudo, até os vários minutos que meus pais levaram elogiando a filha, euzinha.

— Em que cê tá pensando? Tá rindo com uma cara de besta. — Diego me traz para o presente.

E não, não vou socá-lo por me chamar de besta. É o seu jeito de falar. Ele atura meus palavrões e eu meu divirto com seu dialeto.

— Nada. Só lembrando dos meus pais. Já escolheu o filme?

Ele deixa o controle da televisão de lado e se encosta no sofá. Sua expressão não é nada boa. Parece se preparar para contar algo. Nunca o vi tão inquieto como nos últimos dias.

Conheci Diego no primeiro dia de aula dele, transferido de outra escola. Ele tem sotaque do interior de Minas Gerais, além de usar muitas palavras e termos do local, um prato cheio para alunos maldosos. Me tornei amiga dele por isso. Meio que usei o fato de que nossos colegas têm medo de Raoul e me associa a ele, assim qualquer um que eu adotasse ficaria protegido. Acabamos nos aproximando com as constantes faltas do meu melhor amigo no colégio. Um dia rolou um beijo, e logo um pedido de namoro. Eu aceitei. Ele é um loiro lindo e seu sotaque é tão gostoso de ouvir.

Estou pensando em nossos meses de namoro quando ele diz:

— Carmine, eu vô vortá pra Beagá e queria que cê fosse junto. Eu te amo.

Três coisas que eu não estou preparada para ouvir. Vou embora. Vem comigo. Eu te amo.

Fico paralisada, olhando para ele a espera de que diga que imaginei o que acabei de ouvir.

Ele passa a mãos nos fios loiros.

— Num vai falar nada, sô? — pergunta.

Foi real. Ele realmente disse as três coisas.

— Eu não saberia o que dizer, Diego. Eu gosto de você, mas não posso abandonar a minha vida e simplesmente me mudar por um namorado de escola. É loucura, você sabe. — Sou sincera.

— Um namorado de escola. — Ele ri com certa amargura e se levanta, parando na minha frente. — O que cê num pode largá, Carmine? Seu lobim?

O que que esse idiota está dizendo? Seu ciúme do Raoul é tão... nem sei como definir.

Sem contar que ele pode perder os dentes usando a palavra "lobim".

— Eu não preciso dizer para você que a minha família está aqui, todos que eu amo. E sim, isso inclui o meu amigo.

— E cê num me ama. — Não é uma pergunta. E eu não respondo. — Cê é tão cega que chega a ser besta.

É minha vez de me levantar. O fato dele ser pouco maior que eu ajuda a nos deixarmos cara a cara.

— Besta é o olho do seu cu. — Perco a calma. — Pelo jeito você quer um motivo pra terminar brigado comigo. Se era apenas isso, vou embora.

— Que pressa. O seu lobim tá esperanu. Vai!

Odeio que ele mantenha a voz baixa até quando grito com ele. Nunca parece irritado de verdade.

— Não gosto do seu tom, Diego. Se quer me dizer algo, seja claro. Esse seu ciúme do meu melhor amigo chega a um nível ridículo de idiota.

— Vô dexá que descubra sozinha. E espero que perceba quando for tarde dimais.

— Eu não tenho que ouvir isso. — Decido ir embora para que esse termino não fique pior, mas ele segura meu braço.

Estamos novamente frente a frente.

— Eu te amo, Carmine. Te amo de verdade. — Toca meu rosto com o carinho que já conheço, não desvio. — De um jeito egoísta.

— E por isso quer brigar comigo quando está me dando um pé na bunda?

Ele sorri de canto. É fofo esse babaca.

— Até parece que arguém é capaiz de dá um pé na bunda de Carmine Lopes da Rocha.

— Você é o primeiro.

— Desculpe. Eu tenho que ir. Minha mãe piorô da depressão e meus pais precisam de mim. Tão tudo na capitá com minhas tia.

E a raiva se transforma em pena.

— Sinto muito por isso.

— Pode me abraça? — abre os braços com um sorriso pequeno desenhado em seu rosto.

Simplesmente aceito seus braços.

— Úrtimo bejo de despedida?

— Não. Vamos terminar como amigos, da mesma forma que começamos.

Diego vai perceber que exagerou com essa história de amor. Só temos dezessete anos. Minha mãe me arrastaria pelos cabelos se eu ao menos cogitasse a possibilidade de ir para outro estado por um garoto.

— Tentei. — Ele ri, e acompanho. Quando paramos ele me faz encarar seus olhos verdes como duas esmeraldas. — Promete que num vai dexá aquele minino te magoá?

Nem preciso que diga quem.

— Ele é meu melhor amigo. Isso nunca vai acontecer.

Ele só balança a cabeça.

— Ainda podemos ver o filme? — mudo de assunto. Não quero que seu ciúme do meu amigo seja o tópico da nossa última conversa.

Nos sentamos, e encosto a cabeça em seu ombro. Ele pega a pipoca que ficou sobre a mesinha de centro e nós dividimos enquanto rimos com Venom na televisão.

Não falamos mais sobre Raoul, muito menos sobre amor.

E assim, passo minhas últimas horas com meu primeiro namorado. Ele diz que não vai mais voltar às aulas. É um adeus.

Quando nos despedimos, ele rouba um beijo e fala que espera termos a chance de voltar a nos encontrar.

Apenas sorrio em resposta. Porque sei que ele sente mais que eu. Algo em mim diz que não voltaremos a nos encontrar.

É definitivamente um adeus.

DEGUSTAÇÃO - Chapeuzinho Vermelho do Mafioso - Contos da máfia - Livro IIOnde histórias criam vida. Descubra agora