As cartas sem destinatário.

5. Alstroemeria - Saudade e desejo de uma felicidade plena.

25/08/XX - A astromélia significa desejo de amizade eterna e felicidade plena, representa também agradecimento e saudade.

Cara, Astromélia.

Eu me sinto desconfortável, porém tudo isso por não ter descoberto inicialmente o que eu queria de fato.

Por muitos anos nem sabia a diferença entre o que queria com o que deveria querer e isso moldou tanto a argila que ela adquiriu uma forma que era para eu gostar.
Mas gostar dela por quê? Por que foi o que eu queria ou o que eu há de querer?

Falaram para Deus que viemos do barro e na terra, nos reproduzimos. Falaram para mim que eu vim ao mundo com amor, só que ele acabou com o relacionamento de meus pais. Não sei como é um pai amar a mãe e não sei nem como é uma mãe amar o pai. Também não sei como é uma mãe amar seus filhos e supostamente, acho que sei pouco sobre como é os filhos amarem seus pais. Muito velho ou muito novo, nem sabia quem eu era porque a minha mãe disse que só existia uma maneira e essa maneira me matou aos poucos como veneno.

Toda garota de 13 anos sabe como é ser uma garota de 13 anos, eu me pergunto, o que ela queria quando nos deitamos na arquibancada da quadra de esportes. Ela queria amor? Ela queria ser amada? Desde já queria ir embora? Ou queria achar a própria casa? E se Deus estava presente como qualquer outra criança, na qual nem lembro, ele chegou a escutar os nossos sonhos? Nossos lamentos joviais de garotas de 13 anos porque só quem já foi uma garota de 13 anos sabe o que é ser uma garota de 13 anos. Eu nem fui garota, eu nem fui nada, eu nem sabia o que eu era e eu só queria ir para casa. Só que não tinha casa, não tinha rua, não tinha ônibus, não tinha endereço, não tinha localidade, não tinha extensão territorial, nem município, nem estado. Não havia nada dentro do meu coração puro e adoecido pela tristeza.

Nem havia você ali, é capaz de ser que aquela conversa debaixo do teto cheio de bolas de futebol, nem tenha sido real. Talvez, eu estava sozinho igual das outras inúmeras vezes naquele ponto de ônibus dos miseráveis. Eu chorei no meio de gente que nem conhecia, o que será que eles pensaram em ver um arbusto molhado em um dia completamente ensolarado com céu limpo de nuvens? Eu sempre fui meio diferente, mas ainda assim era eu. A minha mãe sempre foi a minha mãe, mas ainda assim era ela. O meu pai sempre foi o meu pai, mas ainda assim era ele. E você sempre foi você, mas ainda assim, você não está mais aqui para dizer isso por você mesma.

Um filho chora na frente de seu pai, ele está com medo, tremendo de medo, um pavor enorme toma seu peito de algum dia, eventualmente, acontecer dele pegar a arma do seu pai e dar um tiro na própria cabeça. Ele está repetindo a mesma cena na cabeça várias vezes como um looping, um emaranhado de teias de aranha e ele também está repetindo a cena em que ela se joga do viaduto. Ele está morrendo medo, desesperado de não conseguir escapar desse ciclo infernal e acabar, consequentemente, caindo do mesmo viaduto. Maldita seja hora quando a mãe deu a luz, por que foi parir alguém para viver em um mundo como esse? Se ele tivesse coragem, faria uma reza no meio da escuridão pedindo para Deus o levar e aí, talvez, ele poderia reencontrar ela de novo e serem felizes em algum outro plano.
Sejamos todos ingênuos, não há felicidade para nenhum deles além da amargura.

Ele sonhou que deitava no chão com uma outra menina, ela lhe conta todos os seus sonhos e opiniões. Ele não disse nada, ele nunca diz nada e mal sabe o que responder porque o estágio da dor está avançando perigosamente. Ela estava deitada no chão porque queria descansar, ele estava deitado no chão porque já estava morrendo. Até que de repente, ele a viu, não era ela de verdade, só alguém muito parecido com tranças tão lindas. Uma menina tão linda, ela estava linda e feliz. Ele começou a chorar e se levantou abruptamente. Ele só sabia dizer que sentia muito e se desculpava dos erros que não cometeu. Ele só queria sair correndo de um mundo que ninguém lhe prometeu.

Eu vou rir da cara emburrada que ele fez quando olhou para si mesmo se perguntando sobre se vai conseguir alguma coisa minimamente boa. Eu vou tratar como se fosse uma piada quando ele sequer cogitar que há esperança para uma vida como essa, é mais fácil que ele acorde, abrace o seu pai, dê um beijo na sua família e coloque uma roupa leve que lhe dê uma falsa sensação de que pode voar para onde quiser. E ele vai percorrer pelos mesmos caminhos que ela percorreu e ele vai chorar de raiva da mesma forma que ela fugiu raivosamente. E ele vai andar na passarela, ultrapassando vários desconhecidos que nem imaginam qual deve ser o seu nome e muito menos o seu futuro destino. E ele vai encarar aqueles carros do viaduto com motoristas estressados querendo dinheiro para sobreviver e por fim, olhando para o céu, se perguntando como Deus vai se sentir. Como Deus deve ter se sentido quando ela partiu? Será que ele pensou que falhou? Será que ele morreu junto também? Eu vou para casa com ela e vamos voltar a ter 13 anos para podermos correr para a aula de educação física porque não existe mais o amanhã. E ele encara o viaduto do alto e o viaduto o encara de lá debaixo e ele se contorce de dor.

Eu vou salvar ele. Eu vou perseguir todos os sonhos dele. Eu vou cantar a sua música favorita para ele se lembrar que existe o amor deles. Eu vou desenhar anjos e demônios. Eu vou aprender a cantar a melodia dos rouxinóis. Eu vou cortar todos os meus pulsos e mostrar para a minha mãe o que ela fez. Eu vou mostrar a ela, principalmente, o fato de termos o mesmo tipo de sangue. Eu vou salvar ele e vamos ser terrivelmente felizes porque se ele se salvar, estou salvando a mim mesmo e ela é salva também. Todos nós vamos começar a correr naquele campo cheio de pedras, só que não temos mais aula de educação física, a diferença é que estamos correndo para alcançar a autonomia sobre a própria história e começarmos a viver. E da última vez que nos vimos, ela estava sorrindo.
Eu vou fazer ele sorrir também.

Com amor,
"A voz engraçada de Deus".