Me deparo deitada no meio da rua, num chão de asfalto muito limpo. No céu, algumas nuvens brancas flutuam devagar. O azul é tão puro que parece mentira.
Sento-me e olho ao redor. Um carro vem em minha direção. Tento levantar rápido, mas já sei que não vai dar tempo. Grito, fecho os olhos e me encolho, já preparada para a possível dor que essa colisão vai me causar. ''Não está tão rápido, não acho que vou morrer''.
O veículo me atravessa como o ar e segue seu caminho.
Passo as mãos pelo corpo, para tirar qualquer sujeirinha que possa ter (e para verificar se não tenho nenhum ferimento). Porém, minha roupa parece muito limpa e estou inteira.
Saio do meio da rua e corro para a calçada.
As grades que cercam o colégio estão começando a descascar, mostrando um pouco de ferrugem embaixo de verniz preto. Observo o prédio bege ao fundo. Tem um ou outro aluno sentado no pátio gramado. Um grupinho de meninas sai pelo portão, conversando em uma língua que não entendo.
- Com licença – Vou em direção a elas, falando em inglês – que lu-
A garota de longos cabelos ondulados me atravessa. ''Hã?''.
- Oi? – chamo de novo – menina! Oi?!
Suspiro. ''Ah...''.
Ando até a entrada. Quando dou um passo para dentro do terreno escolar, sinto como se eu tivesse dado de cara a uma parede de vidro. ''Não entendi''. Tento de novo e de novo e de novo e de novo.
Hm... Um carro e uma pessoa passaram por cima de mim, mas não consigo passar pela porta. Que palhaçada é essa?!
Um homem, que creio que seja um professor, entra pelo portão normalmente. Dou um grito, mas – como eu já imaginava – ele não me ouve. Estico o braço e sinto a parede invisível.
''É... Acho que fui barrada no próprio mundo que criei''.
Dou de ombros.
Vejamos... Se aqui é o mundo da Lina, a casa dela não deve ser muito longe.
Olho para os dois pólos da calçada, perdida. ''Parabéns, Clarice! Você nem sabe onde sua personagem mora!''.
Mais um carro passa.
- Lichfield Road – a voz de uma garota diz em meu ouvido – Desça a rua – olho para trás, porém não tem ninguém – direita, atravesse na frente da casa de flores amarelas – cubro as orelhas com a mão e busco pela dona da voz que continua dentro da minha cabeça – siga em frente, primeira rua a direita, décima primeira casa. Lado direito.
Sigo pela Lichfield Road. Todas as casas têm a mesma estrutura: dois andares, janelas amplas e cercas de madeira para delimitar onde termina a área de uma residência e começa a outra. As cores variam de um bege clarinho para um vermelho amarronzado. As copas das árvores balançam com um vento que não sinto.
Paro na frente da décima primeira casa, a de paredes cinzas. Caminho pelo gramado bem cuidado em direção a janela aberta.
Dentro da sala de estar, livros e cadernos abertos estão espalhados na mesinha de centro. Lina e Bernardo estão sentados no chão, o som dos lápis rabiscando o papel é o único barulho que escuto.
Vou até a porta e, receosa, toco a campainha. Para minha surpresa, ela soa. Algo como ding, ding, ding, dooong.
Dou um passo para trás e aguardo. Escuto vozes do outro lado, o barulho da tranca abrindo. Bernardo aparece, me lança um olhar irritado e fecha a porta. Ignoro esse mal comportamento e toco de novo. ''Querido, vou fingir que você não fez isso''.
Bernardo abre a porta novamente e ergue a sobrancelha.
- O que é que você quer? – ele sussurra irritado.
- Quero falar com a Lina – respondo de um jeito simpático – posso?
- Não.
Ele bate a porta e a tranca. Toco a campainha de novo e o tinido ecoa pela casa.
''De novo?'', escuto a voz abafada de Lina do outro lado da parede.
''Não tinha ninguém, deve ter sido uma criança'', Bernardo responde tranquilo ''Saiu correndo''.
Aperto o botão de novo. Passos do outro lado.
''Deixa que eu atendo'', o garoto diz, um pouquinho nervoso ''Vou dar uma bronca''.
''Ah, não briga com ele não! Tem que falar com jeitinho. Olha só''
A maçaneta gira e a porta se abre. O sorriso doce de Lina desaparece. Seus olhos se arregalam e vejo medo em seu rosto.
A porta se fecha com uma batida.
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Clarice, que não é, Lispector
RomanceClarice é uma universitária de personalidade excêntrica (palavra essa que, segundo ela, lembra russos com bigodes ao estilo Salvador Dalí). Sua vida deixa de ser comum quando conhece Arthur, um colega de classe que é idêntico a Bernardo, o personage...