Capítulo 14

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Me deparo deitada no meio da rua, num chão de asfalto muito limpo. No céu, algumas nuvens brancas flutuam devagar. O azul é tão puro que parece mentira.

Sento-me e olho ao redor. Um carro vem em minha direção. Tento levantar rápido, mas já sei que não vai dar tempo. Grito, fecho os olhos e me encolho, já preparada para a possível dor que essa colisão vai me causar. ''Não está tão rápido, não acho que vou morrer''.

O veículo me atravessa como o ar e segue seu caminho.

Passo as mãos pelo corpo, para tirar qualquer sujeirinha que possa ter (e para verificar se não tenho nenhum ferimento). Porém, minha roupa parece muito limpa e estou inteira.

Saio do meio da rua e corro para a calçada.

As grades que cercam o colégio estão começando a descascar, mostrando um pouco de ferrugem embaixo de verniz preto. Observo o prédio bege ao fundo. Tem um ou outro aluno sentado no pátio gramado. Um grupinho de meninas sai pelo portão, conversando em uma língua que não entendo.

- Com licença – Vou em direção a elas, falando em inglês – que lu-

A garota de longos cabelos ondulados me atravessa. ''Hã?''.

- Oi? – chamo de novo – menina! Oi?!

Suspiro. ''Ah...''.

Ando até a entrada. Quando dou um passo para dentro do terreno escolar, sinto como se eu tivesse dado de cara a uma parede de vidro. ''Não entendi''. Tento de novo e de novo e de novo e de novo.

Hm... Um carro e uma pessoa passaram por cima de mim, mas não consigo passar pela porta. Que palhaçada é essa?!

Um homem, que creio que seja um professor, entra pelo portão normalmente. Dou um grito, mas – como eu já imaginava – ele não me ouve. Estico o braço e sinto a parede invisível.

''É... Acho que fui barrada no próprio mundo que criei''.

Dou de ombros.

Vejamos... Se aqui é o mundo da Lina, a casa dela não deve ser muito longe.

Olho para os dois pólos da calçada, perdida. ''Parabéns, Clarice! Você nem sabe onde sua personagem mora!''.

Mais um carro passa.

- Lichfield Road – a voz de uma garota diz em meu ouvido – Desça a rua – olho para trás, porém não tem ninguém – direita, atravesse na frente da casa de flores amarelas – cubro as orelhas com a mão e busco pela dona da voz que continua dentro da minha cabeça – siga em frente, primeira rua a direita, décima primeira casa. Lado direito.

Sigo pela Lichfield Road. Todas as casas têm a mesma estrutura: dois andares, janelas amplas e cercas de madeira para delimitar onde termina a área de uma residência e começa a outra. As cores variam de um bege clarinho para um vermelho amarronzado. As copas das árvores balançam com um vento que não sinto.

Paro na frente da décima primeira casa, a de paredes cinzas. Caminho pelo gramado bem cuidado em direção a janela aberta.

Dentro da sala de estar, livros e cadernos abertos estão espalhados na mesinha de centro. Lina e Bernardo estão sentados no chão, o som dos lápis rabiscando o papel é o único barulho que escuto.

Vou até a porta e, receosa, toco a campainha. Para minha surpresa, ela soa. Algo como ding, ding, ding, dooong.

Dou um passo para trás e aguardo. Escuto vozes do outro lado, o barulho da tranca abrindo. Bernardo aparece, me lança um olhar irritado e fecha a porta. Ignoro esse mal comportamento e toco de novo. ''Querido, vou fingir que você não fez isso''.

Bernardo abre a porta novamente e ergue a sobrancelha.

- O que é que você quer? – ele sussurra irritado.

- Quero falar com a Lina – respondo de um jeito simpático – posso?

- Não.

Ele bate a porta e a tranca. Toco a campainha de novo e o tinido ecoa pela casa.

''De novo?'', escuto a voz abafada de Lina do outro lado da parede.

''Não tinha ninguém, deve ter sido uma criança'', Bernardo responde tranquilo ''Saiu correndo''.

Aperto o botão de novo. Passos do outro lado.

''Deixa que eu atendo'', o garoto diz, um pouquinho nervoso ''Vou dar uma bronca''.

''Ah, não briga com ele não! Tem que falar com jeitinho. Olha só''

A maçaneta gira e a porta se abre. O sorriso doce de Lina desaparece. Seus olhos se arregalam e vejo medo em seu rosto.

A porta se fecha com uma batida.

Clarice, que não é, LispectorOnde histórias criam vida. Descubra agora